João Leal
R. Santana
Eu o conheci jovem adulto nos meados dos anos 60, no armazém do seu pai, no início da Avenida Cinquentenário. Naquela época, o armazém de Osmar Cearense, seu pai, era o principal comércio de atacado de Itabuna, lá, ele vendia: cigarro, fósforo, whisky, cerveja, refrigerante, carne-de-sol, jabá, sal, farinha, leite em pó, bacalhau, etc. Ele abastecia as bodegas da periferia itabunense, os bairros mais centrais e até as pequenas cidades circunvizinhas, como um grande “ATACADÃO” de hoje.
João Leal era diligente no trato com a freguesia, todos eram tratados com o cuidado de vendedor, só uma vez que seu pai lhe reclamou no meio dos fregueses, é que João Leal chamou, impensadamente, um cidadão de negro, “aquele negro...”, foi o suficiente pra que, daquele dia em diante, ele não chamasse mais ninguém de negro, não lhe deu uma sova, mas, ele marcou várias lições de Moral e Cívica e João Leal foi estudar como castigo.
Naquela época, não se conhecia discriminação de cor da pele, segregação, não se conhecia homofobia, "gordofobia", não se conhecia LGBTQ+, todos nós éramos inocentes, não havia maldade, homem era homem, mulher era mulher, negro era negro e branco era branco, família tradicional e todos nós convivíamos em perfeita harmonia, todos nós éramos irmãos, depois que surgiram novos costumes e novos comportamentos, o mundo ficou imundo.
Osmar Cearense era um gentleman, se ralhou com seu filho para que não chamasse o seu freguês de negro, o fez por educação, exemplo, para que seu filho soubesse respeitar seu semelhante não pela cor da pele, mas por ser um ser um filho de Deus. João Leal cresceu nesse lar de princípios morais, éticos e de amor ao trabalho. Osmar Cearense dizia que “o trabalho dignifica o homem e enobrece a alma” e “a educação forma o coração e a razão”.
Muitos anos depois, Osmar Cearense morreu, o armazém foi vendido ou alguém fechou suas portas e a família cearense dispersou-se. Nessa época que reencontrei João Leal, mais velho e mais gordo (obesidade genética), no café do “Bar de Pedro”. Não bebia nem fumava, aliás, ele não tinha vício, disciplinado, comia o necessário, não se empanturrava de doce e o café era com adoçante, não com açúcar, mais frutas do que massa.
Nesse tempo, João Leal licenciado em Letras, ensinava inglês e português nos principais colégios desta cidade e na cidade de Uruçuca, no colégio do prof. João Arbages, antigo mestre e amigo.
João Leal era um bonachão, incapaz de qualquer maldade com o outro. Grandioso, eloquente, possuía o dom da palavra, nos eventos das escolas que trabalhava, sobressaía-se como orador ímpar. Lia com frequência Cícero e tomava como exemplo, a resiliência e a determinação do grego Demóstenes que se tornou o maior orador de todos os tempos.
Babava quando João Leal chegava ao “Bar de Pedro” pra tomar café e lhe pedia que recitasse as “Catilinárias”, ele, com voz empostada e gestos e expressões faciais, acusava o senador Catilina como se Marco Túlio Cícero fosse e em latim. Lembro-me da primeira frase: “Até quando, Catilina, abusarás da nossa paciência?” Para mim estudante de escola pública, era um deleite ouvir as “Catilinárias” com tanta propriedade e originalidade poética.
Se ele fosse ator, teria sido um Shakespeare, um Antônio Fagundes ou um Tony Ramos da dramaturgia... Certa feita, ele ensinava na escola de Celina Braga Bacelar e a parte financeira da escola não ia bem, por isto, os atrasos salariais com professores e fornecedores, João Leal lhe chamou à parte, desembrulhou uma peixeira suja de sangue e de maneira dramática, ele apelou para Celina Braga Bacelar: “Professora, esta é a peixeira que o açougueiro disse que vai me matar se não pagar o que lhe devo até amanhã”, de imediato, ela o chamou num canto e lhe disse: “Olhe, todos são meus benjamins, mas você é meu bem querer...” e desembuchou tudo que lhe devia.
O homem nasce com sina mais livre arbítrio. Alguns têm tanta sorte que tudo que faz dar certo. Ultimamente, qualquer imbecil de sorte vira celebridade no mundo midiático. João Leal foi determinado, mas a sorte não lhe sorriu embora de cultura singular, sempre com dificuldade financeira e existencial. Poliglota, ensinou inglês na maioria dos colégios daqui e noutras cidades circunvizinhas e morreu pobre.
Hoje, arrependo-me e peço perdão a Deus num dia que não lhe fui solidário. Eu o encontrei num ônibus urbano, com listras vermelhas no pescoço, na época, indicativo de tratamento de câncer. Cumprimentei-o an passant, pois, eu fiquei comovido, sabia que aquilo seria o final e foi... Sei que Deus o recebeu em sua Glória e seu exemplo ficou para sempre aqui na terra.
Autoria:Rilvan Batista de Santana
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