Textos


O pai e o filho - R. Santana


“Na verdade, na verdade, te digo que, quando eras mais moço, te cingias a ti mesmo, e andavas por onde querias; mas, quando já fores velho, estenderás as tuas mãos, e outro te cingirá, e te levará para onde tu não queiras. ” (João 21: 18)

- Filho, preciso lhe falar!
- O quê? Fale!
- Filho, falar sobre a vida... a minha solidão... a minha depressão... as minhas necessidades... os meus netos... alguém que me diga que vale a pena continuar!
- Pai, não tenho tempo para conjeturas, filosofar... O trabalho me absorve, além disto, eu tenho que cuidar dos meus filhos e minha mulher!
- Filho, quando você era criança, eu lhe cuidava e cuidava de seus irmãos, sua mãe e seus avós, havia tempo pra tudo. Não lembra?
- Não!
- Eu fico aqui, sozinho, converso com as paredes, converso com ninguém... Você só aparece de caju em caju!
- Meu pai, já lhe disse, não tenho tempo. O senhor quer sacrificar o meu casamento?
- Não, não!
- O senhor brigou com sua nora!
- Não filho, ela que me colocou pra fora de sua casa, com ciúme dos meus netos, se eu não tivesse esta casa, iria morar na rua!
- Nem todo mundo tem paciência com velho... Preciso da mãe dos meus filhos – acrescentou:
- O senhor precisa sair, jogar conversa fora com os velhos no jardim da praça, fazer amigos, fazer caminhada, tomar uma cervejinha no bar da esquina, não ficar, aqui, colado à televisão o tempo todo. Viva e deixe-me viver com minha família. Quer ir para um abrigo de idosos?
- Hahaha! Seus irmãos concordariam?
- Os meus irmãos moram muito longe, têm seus problemas. Há anos se correspondem só por telefone, agora, pelo WhatsApp, eles estão se lixando... Eles comeram o milho, eu, o sabugo!
- Quer dizer que eu sou o sabugo!?
- É a maneira de dizer meu pai, porém, é uma realidade. Hoje, o senhor não mais produz, não faz nada, só me faz dar trabalho.
- Filho, eu não posso trabalhar com tantas comorbidades nem andar jogando conversa fora. Estou lhe pedindo que fique mais comigo, venha ver seu pai mais vezes e quero ver os meus netos!
- Já lhe disse que não tenho tempo. Quanto aos seus netos é com a mãe deles. Por que não vai vê-los?
- Não seria recebido por sua mulher!
- Então não me culpe – o velho explodiu:
- Você é um filho ingrato! Quantas vezes mudei suas fraldas? Quantas vezes lhe dei banho? Quantas vezes lhe levei para seus avós? Quantas vezes fiz horas extras na empresa sem vontade para não lhe faltar comida e aos seus irmãos? Quantas vezes lhes levei ao cinema ou ao circo? Quantas vezes levei você e seus irmãos para o futebol de várzea? Quantas vezes eu e sua mãe deixamos de jantar para que vocês não fossem pra cama de barriga vazia? Sem conta!...
- Pai, os tempos eram outros!
- Não, não, os filhos é que são outros!...

 

[***]

Um mês depois:

Diário de Notícias: "Pai depressivo e sozinho, escolheu o ponto mais alto da cumeeira da casa, amarrou uma corda no pescoço e se jogou..."


Autoria: Rilvan Batista de Santana
Licença: Creative Commons

Membro Academia de Letras de Itabuna

Imagem: Google

Rilvan Santana
Enviado por Rilvan Santana em 28/05/2021
Alterado em 30/05/2024


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Imagem de cabeçalho: Sergiu Bacioiu/flickr