Textos


O Cortiço - R. Santana

 

Eu fico aqui em meu canto, no São Caetano, junto da feira-livre, em que o homem disputa com os urubus, o resto de comida na concha de lixo. Não existe o fogo de Dante Alighieri, mas, é uma cena dantesca. Não sou nem serei nunca um chato politicamente correto, temos que combater as injustiças e os preconceitos sociais com trabalho, educação e eliminar as ações dos corruptos através do exercício da democracia, isto é, usar o voto para escolhermos políticos corretos, idôneos para os cargos públicos, não com posições radicais e reacionárias.
Já li e reli algumas vezes “O cortiço” do naturalista Aluísio Azevedo que numa crítica social à condição do negro naquela época, que para o negro ficar livre, teria que comprar o “forro” e ficar desobrigado, alforriado.
“O cortiço” é a história de um sujeito ambicioso, João Romão, que era empregado de um armazém de certo português. O português volta para sua terra e João Romão, econômico, “unha de fome”, adquire o armazém do seu ex-patrão. Não muito distante do seu negócio, uma crioula trintona, Bertoleza, recém viúva dum português carroceiro, tem uma quitanda rendosa. João Romão vê ali uma oportunidade lucrativa, amigar-se com a crioula, ganhou-lhe a confiança e passou ser seu procurador nos negócios e seu amante
Pouco tempo depois, ela confessou-lhe que era escrava dum cego que morava em Juiz de Fora, um tal Freitas de Melo e tinha que lhe pagar o “Jornal” para ficar livre do seu Senhor. João Romão matutou, engendrou um documento de alforria, ficou com seu dinheiro e disse-lhe, após ele lê o falso documento de alforria: "... agora, você não tem mais Senhor, o cego recebeu tudo que tinha direito, tu és livre!" Ingenuamente, ela lhe responde: “Coitado! A gente se queixa é da sorte. Ele como meu senhor, exigia o “jornal”, exigia o que era dele”.
Com as economias de Bertoleza, ele comprou o terreno do lado esquerdo da bodega, depois, mais outro, mais outro, mais outro e deixou o rico português Miranda, seu vizinho, limitado nos terrenos de sua mansão, cerceado pela ambição de João Romão que adquiriu todos os terrenos ao redor, com o objetivo de instalar uma estalagem e no fundo dos terrenos, uma pedreira bastante produtiva e lucrativa.
A ambição de João Romão foi crescente, construiu a “Estalagem São Romão”, com dezenas de casinhas e tinas com muita água para as lavadeiras e ampliou sua bodega que não era mais bodega, mas, o maior armazém de secos, molhados e variedades daquelas redondezas. João Romão era, então, o novo capitalista de Botafogo.
Miranda, seu vizinho, era aristocrático, nobre, com título de nobreza, um visconde. Sua mulher, dona Estela, era uma messalina, viciada em sexo, levou para cama até o Henrique, rapazola estudante de medicina, filho dum rico fazendeiro de Minas Gerais, seu pai lhe confiou à proteção de Miranda, enquanto estudante de medicina na capital. Miranda tinha uma única filha, a Zulmira, que João Romão botou os olhos e ajudado por Botelho, parasita e agregado da família, pediu-a em casamento.
Agora, o problema de João Romão era desvencilhar-se de Bertoleza, mas, a negra criara raízes, ajudou-o a construir um pequeno império e não iria largar o “filé mignon”. Um dia, ela flagrou conversa de João Romão e Botelho e, descontrolou-se:
- Você está muito desenganado, seu João, se cuida que se casa e me atira à toa! - exclamou ela - Sou negra, sim, mas tenho sentimentos! Quem me comeu a carne tem que roer-me os ossos! Então há de uma criatura ver entrar ano e sair ano, puxar pelo corpo todo santo dia que Deus manda no mundo, desde pela manhãzinha até pelas tantas da noite, para depois ser jogada no meio da rua, como galinha podre? Não! Não há de ser assim, seu João!
Dias depois, João Romão confiou ao parasita Botelho que Bertoleza era escrava do cego Freitas de Melo, que ainda não havia adquirido a liberdade, que o cego havia morrido e, Botelho lhe perguntou: “Ele não deixou herdeiro?”, aí João Romão caiu em si, iria encarregar Botelho procurar os herdeiros de Freitas Melo e entregar Bertoleza ao seu dono, porque, ele tinha enganado o tempo todo a negra e lhe surrupiado o dinheiro. Sem Bertoleza o caminho estaria livre para se casar com Zulmira e tornar-se visconde: “Sim, sim, visconde! Por que não? E, mais tarde, com certeza, conde!”
O desfecho foi triste, a negra acocorada tratava escamas e tripas de peixe, quando o filho mais velho de Freitas Melo chegou (ela o reconheceu) acompanhado de 2 urbanos, deu-lhe voz de prisão, a reação de Bertoleza foi inesperada e suicida: “... Bertoleza então, erguendo-se com ímpeto de anta bravia, recuou de um salto e, antes que alguém conseguisse alcançá-la, já de um só golpe certeiro rasgara o ventre de lado a lado”.
Antes que os vermes comessem as carnes de Bertoleza, na sepultura, houve o enlace matrimonial de Zulmira e João Romão. Ninguém sabe se foram felizes, o recado de Aluísio Azevedo encerrou-se com a morte da negra. O trabalho do escritor foi descrever a condição social e moral do escravo daquela época e o surgimento dos novos ricos e o declínio dos nobres, dos falsos fidalgos.
Fiz essa resenha de “O cortiço” do Século XIX para justificar o resgate social dos afro-brasileiros e afrodescendentes, a sociedade brasileira lhes deve mais de 5 séculos de injustiças, o negro sempre foi visto como sub-raça, mão de obra desqualificada, barata, para trabalhos braçais. Até os aforismos eram depreciativos: “Preto correndo é ladrão, parado é suspeito”, então, “Preto quando não suja na entrada, suja na saída”, “Preto com alma de branco”, etc., etc.
Por outro lado, faz medo as ações politicamente corretas, elas não corrigem as injustiças, aprofundam as diferenças, as discriminações e as segregações. A intolerância e o preconceito se combatem com amor, não com ódio. O negro não precisa de privilégios, de cotas, o negro necessita de oportunidades no mercado de trabalho, educação, políticas públicas de inserção e de inclusão permanentes.
Hoje, a intolerância não é só com o negro, mas condutas de retaliações de negros com brancos e condutas exacerbadas de ódio irracional e aversão pelo outro por causa de raça, por causa da profissão de fé, condição social, da religião, etc.
Condutas afetivas, amorosas, de homem e mulher, antes normais, hoje, são condutas morais reprovadas pela sociedade, a exemplo de seduções e flertes que se confundem com assédios, insistências importunas, crimes sexuais. É necessário, portanto, que se faça uma diferença entre o joio e o trigo. Nunca se cobrou tanto do homem sua capacidade de discernimento, bom senso para não confundir a conduta afetiva com atitude criminosa.
Enfim, "devagar com o andor, que o santo é de barro", antes de qualquer atitude desastrosa, exige-se calma, ponderação, não imputar ao outro, gratuitamente, conduta leviana, preconceito, discriminação, assédio moral, senão, muitos inocentes serão destruídos.


Autoria: Rilvan Batista de Santana
Licença: Creative Commons

 

(*) Negra / Foto Google


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Rilvan Santana
Enviado por Rilvan Santana em 05/10/2020
Alterado em 25/11/2022


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Imagem de cabeçalho: Sergiu Bacioiu/flickr