Neco - R. Santana
Quando o conheci, eu não passava de um adolescente de ginásio, Neco era um homem idoso de idade indefinida, não sei se naquela época, se ele tinha 60 anos de vida ou 70 anos de vida, sou daqueles que comunga com o pensamento popular: “... cada pessoa tem a idade que lhe parece”. Não foi sua idade que me moveu fazer esta crônica, mas, fazer jus à memória de um amigo velho que me incentivou ao culto das letras.
Não tinha formação acadêmica, havia aprendido ler as coisas do mundo e, empiricamente, separar o bem e o mal. Sua experiência de vida, sua sabedoria e suas qualidades morais supriam as lições da escola que não frequentou, por isto, ele se via em mim na busca do conhecimento institucional. Ele se comprazia com o meu sucesso escolar, principalmente, quando era promovido de série. Sua expectativa de vida é que eu fosse um advogado, um grande tribuno de quatro costados, naquela época, Wilde Lima, Waly Lima, Adélcio Benício, Raimundo Lima e Alberto Galvão eram os proeminentes da ciência do Direito e da Retórica de Itabuna.
Neco, embora de bom caráter, generoso, solidário, prestativo, não era um virtuoso, tinha o vício de jogar cartas apostado. Ele gostava de ronda, bisca, canastra, buraco, etc. Não era exímio no carteado, porém, se saía muito bem, nos últimos anos de vida, ele tirava seu sustento com as apostas do jogo de baralho. Até no jogo, ele exercia a ética, nada de trapaça, de cartas marcadas, ganhava com honestidade e perdia com decência.
Quando li o romance “Dom Casmurro” de Machado de Assis, Bento Santiago, “Bentinho” de Capitu e dona Glória, lá, encontrei Neco em José Dias. Neco e José Dias se faziam necessários e solícitos onde estivessem. José Dias, o homem dos superlativos, aplicou a homeopatia para curar os familiares e os agregados de Bento Santiago pai e Neco fez-se necessário nos negócios de jogatina no Bar de Pedro de propriedade de meu tio Pedro. Ambos, ganharam a simpatia dos progenitores, da família, foram ficando e ficaram.
Neco se apresentou como mestre de obras, porém, ninguém nunca viu uma obra que lhe credenciasse um construtor, assim como José Dias não era médico, Neco não era mestre de obras, mas um “crupiê”. Confessou depois que tinha trabalhado em parques de diversões e cassinos, dirigindo as mesas de jogos de azar.
Quando meu tio Pedro estava impedido por algum motivo de administrar a mesa de baralho, lá estava ele cuidando do cacife noite adentro. Pela manhã do dia seguinte, Neco prestava conta sem faltar um tostão sequer, era remunerado pela noite perdida, comprava o pão na padaria, ia pra casa levar o dinheiro pra sua velha comprar os mantimentos necessários à sobrevivência do dia a dia. Eles não tinham filhos, nunca os tiveram, nem parentes tinham, se tinham parentes, ficaram esquecidos em terras distantes.
Recebi dele muitos estímulos para leitura, achava que a leitura era o principal instrumento para alcançar o conhecimento, valorizava a prática, aliás, sua vida havia sido construída por ações práticas, porém, a prática tornava-se mecânica e repetitiva, empírica, a leitura lhe dava a possibilidade de raciocínios dedutivos e indutivos com a interpretação de problemas. Recorria sempre ao pensamento do escritor Monteiro Lobato: “Quem mal lê, mal ouve, mal fala, mal vê”, por isto, tornei-me um leitor contumaz. A leitura leva-nos aonde não podemos ir fisicamente.
Neco não gostava da velhice. A velhice é a somatização dos males físicos, deveria ser a melhor idade pela experiência acumulada, a sabedoria, maior compreensão do outro e a idade da razão, no entanto, a velhice traz comorbidades incômodas e doloridas que, certamente, a velhice não é a melhor idade, mesmo a vida de um estoico, indiferente à dor e à adversidade.
Neco era como uma estrela cadente, onde passava deixava um rastro luminoso, logo se apagava e deixava de ser estrela para ser pedra. Como estrela, espalhava bondade e não esperava reconhecimento. Alguns lhe eram gratos por toda vida, outros, faziam de conta que nunca o tinham visto. Ele não ligava, sempre dizia que o bem era maior. Dizia que o mal não se sustenta por muito tempo, a energia negativa por si se destrói enquanto o bem é uma centelha divina eterna.
Acima ficou claro que Neco jogava mais por necessidade, não só por prazer. As noites não dormidas nas salas de jogos, a vida difícil e o cuidado com o cacife do outro, jogou-lhe por terra um AVC. Os amigos lhe acudiram, não lhe faltou o sustento, o remédio, o apoio moral, mas o corpo alquebrado chegou ao fim, seu exemplo moral e seu amor pelo saber permanecem até hoje.
Autoria: Rilvan Batista de Santana
Licença: Creative Commons
Membro Fundador da Academia de Letras de Itabuna - ALITA
Imagem: Google