Textos


Lopeu - R. Santana


Quando eu o conheci, ele não era um velho moço, mas um moço velho: ele usava umas calças folgadas (o finado era maior), camisas de mangas curtas fora das calças, cinturão largo, sandália japonesa e chapéu de abas pequenas para cobrir a careca proeminente. Sempre com barba e bigode escanhoados, roupas simples e limpas, roupas sem mau cheiro, um pobre diabo de bons costumes.
Bonachão, avesso à briga, uma boa alma, incapaz de qualquer maldade. Não bebia nem fumava. Ninguém nunca o viu tecer picuinhas de A ou de B. Sua vida amorosa era um mistério, não se sabia se amava ou era amado, sabia-se que alguém nunca lhe viu com mulher, as más línguas duvidavam de sua masculinidade, diziam-no invertido. Não era sabido sua religião, na dificuldade sempre recorria aos Salmos 91: “Aquele que habita no esconderijo do Altíssimo, à sombra do Onipotente descansará”...
Não era um parasita que comia e bebia à custa dos pais ou de alguém da família, ele era cambista de “jogo do bicho”. Naquela época, era “jogo do bicho” ou “bilhete da sorte grande“, da Caixa Econômica Federal. Os pobres jogavam no bicho, os menos pobres jogavam na loteria. Lopeu o que ganhava, jogava. Gostava de jogar no bicho e no “Snooker”, às vezes, ele amanhecia o dia no jogo de sinuca, no “Bar de Pedro”, o único “point” do São Caetano de tempos idos.
O “Bar de Pedro” tinha 2 sinucas, jogo de carteado e 2 mesas de dominó e, foi o primeiro bar do bairro que teve um balcão de sorveteria. No verão, uns 10 meninos saiam com caixas de isopor, vendiam picolé, “sorvete de palito”, no estádio de futebol, na feira-livre, em todo lugar de aglomeração. Picolé de cajá, manga, chocolate, goiaba, coco, cacau e outros sabores que a memória resiste em lembrar. O sorvete de copo era vendido no balcão.
Lopeu era um jogador de sinuca contumaz, jogava bem, quase profissional, não jogava carteado nem dominó. Sua paixão pelo bilhar era comentada, aliás, o sinuca de 7 bolas, naquele tempo, era o jogo de muitos aficionados, havia até torneios com festas e faixas para os campeões. Para Lopeu, o bilhar não era um hobby, nunca disputou nenhum certame, jogava apostado para sobreviver.
Certa feita, apareceu do nada, no “Bar de Pedro”, um sujeito desconhecido com pinta de mateiro: calça cáqui, as pernas das calça, uma bainha em cima e outra embaixo, sandália de couro à Luiz Gonzaga, camisa de brim azul, cigarro de palha e jeito de caipira, ainda jovem, o pessoal começou chama-lo de “Galego” pelos cabelos ruivos.
Galego chamou Lopeu pra jogar sinuca sem aposta, um trapalhão no jogo: o taco “espirrava”, ia jogar na bola vermelha tocava na bola preta, de quando em vez, ele “suicidava” a bola branca, bicava na bola e, ela pulava no chão, um desastre... Os “perus” gozavam do desconhecido. Lopeu o achou oportuno e ganhou alguns trocados. Assim, Galego comportou-se de dia e parte da noite. Riam-se do pixote...
No outro dia, cedo ainda, Galego chegou ao bar. Não quis jogar, foi ao balcão e tomou o café da manhã reforçado. Não quis jogar logo, sentou-se num banco comprido reservado aos espectadores e palpiteiros. Ficou lá por um bom tempo, acredita-se que por estratégia, para conhecer os mais endinheirados. Às 10 horas, ele entrou no jogo com um inveterado burareiro de cacau. Não parecia mais o trapalhão do dia anterior, pouco e pouco, comedido no jogar, prudente (ganhava com alguns pontos a mais), às 22 horas, daquele dia, Galego havia deixado os frequentadores de sinuca de bolso limpo. Ninguém mais ria dele!...
No terceiro dia, algo inesperado aconteceu: Galego deu uma “surra” de sinuca em Dico Soldado, deixou-lhe zero de bolso. Dico Soldado era um sujeito matador de bandido, de atitudes trogloditas, um ignorante que se impunha na comunidade pela farda militar (nessa época, o soldado do interior era mais temido que um coronel da capital), no final duma das partidas que estava massacrado pela perícia de Galego, Lopeu falou qualquer coisa e recebeu uma bolada de sinuca na caixa dos peitos e chorou de dor. Os frequentadores do bar, acudiram Lopeu e Zé Urubu cochichou-lhe alguma coisa que algum tempo depois, soube-se desse segredo à boca miúda.
No último dia de sua estada na comunidade, não havia mais dúvida de sua habilidade e destreza, ele não era um jogador comum, ninguém mais se atrevia enfrenta-lo na mesa de pano verde, salvo, se fosse de brincadeira. Aí, Galego passou se mostrar como espetáculo, deixava o adversário dá a primeira tacada, aí, pegava na bola 1 e encerrava na bola 7. Foi um dia de espetáculo, ele deixou os aficionados pelo sinuca embasbacados, de queixo caído, alguém da turma teve um insight:
- Quem é você?
- Walfrido Rodrigues dos Santos, os íntimos me chamam de “Carne Frita”! – Bem, não precisava dizer mais nada, Carne Frita começava ser uma lenda do taco do Nordeste do país.
***
Três meses depois:
Naquela noite, noite de Lua Nova, as ruas escuras do São Caetano, as casas iluminadas com candeeiro e Aladim, Dico Soldado entra na casa duma mulher sem marido. No meio da noite, enquanto ele rolava na cama com a matrona, alguém, pé ante pé, pega sua calça na cadeira com coldre pendurado no cinto e “Taurus 38 ”, desaparece pela porta do fundo.
Minutos depois, alguém bate com força à porta:
- Maria! Maria! Maria! – Dico Soldado pula da cama e procura a calça e a arma em vão, na casa do sem jeito, corre nu pra porta do fundo e um negrão lhe acode com panadas de facão nas costas e pipocos de tiro. Ele pula a cerca com a velocidade dum falcão-peregrino e desaparece na bruma da noite.
Lopeu tremia que nem vara verde, Zé Urubu e o negro Lubião se impacientam:
- Seja homem! Não gostou que lhe vingássemos? – todos estavam de alma lavada.
Dico Soldado morreu muitos anos depois sem saber o motivo e os autores daquela sova.



Autor: Rilvan Batista de Santana
Licença: Creative Commons
Rilvan Santana
Enviado por Rilvan Santana em 21/06/2020
Alterado em 22/06/2020


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Imagem de cabeçalho: Sergiu Bacioiu/flickr