A olaria - R. Santana
Naquele ano, que já vai longe, eu brincava nos corredores de tijolos não cozidos duma olaria, quando uma prateleira de tijolos crus despencou e por fração de tempo não caiu em cima de mim. Mais pelo susto do que pelo acidente, abri o berreiro e fui acudido por Nozinho, oleiro dos quatro costados, ele ocupava o lugar do pai que não tive. Nozinho era o marido de minha tia-mãe Judite. Homem simples, sem malícia, inocente da luxúria do mundo, uma alma boa, logo, se o céu é dos humildes de coração, certamente, ele está lá amparado por santos e anjos. Naquela época, eu deveria ter 4 ou 5 anos de idade, cabelos cor de milho, cor branca, olhos verdes, se tivesse nascido na Europa, receberia de Joseph Goebbels a graça de sangue ariano, mas ali, no meio do barro e dos barreiros, eu era o filho do oleiro. Esses fumos de grandeza, megalomaníacos, se adquirem com a vida e os anos, ali, rodeado de tijolos crus, telhas, moringas de barro e potes cozidos, orgulhava-me de ser o filho do dono da olaria. Sentia por Nozinho o amor de filho, não conhecia outro pai nem queria conhecer outro pai, para mim, ele era o meu pai. Quando, depois do almoço, ele me levava para olaria, passava às tardes nos corredores dos barracões cobertos de palha, atrás dos calangos que ousadamente saiam de suas tocas, ou, passava a tarde moldando bonecos de barro, cachorros de barros, gatos de barro e outros animais, que no fim do dia, Nozinho os colocava no forno e de lá saía “gente”, saía “cachorro” e, saía também, todo o meu sonho de criança imaginado. Se algum boneco nascia com defeito de nascença, ele refazia comigo o boneco perfeito, às vezes, a noite caía. Em casa, muitos utensílios domésticos eram de barro de olaria: panela de barro, moringa, pote, jarro, etc. O fogão era de tijolo revestido de reboco com uma chapa de ferro com buracos adaptados pra panela, embaixo da chapa, colocava-se, como combustível, lenha seca ou carvão. Se alguém ia fazer um churrasco, improvisava-se 2 fileiras paralelas de tijolos e uma trempe de ferro em cima, aí, a churrasqueira estava pronta. Aqueles homens tinham em comum o peito sempre constipado pelo fato de lidarem com forno de temperatura elevada para cozimento de tijolo, de telha e de todas as peças de barro. Além do vício do cigarro de fumo in natura, do tabaco e da boa cachacinha no final do serviço. A olaria não lhes trazia dinheiro farto, mas lhes deixava dignos em sua pobreza. Todos os oleiros tinham mulher e filhos e a fonte de renda principal era a olaria, todavia, a CLT não chegava até eles, carteira de trabalho assinada nem ver... A maioria, velho, morria na miséria. Faz-se necessário registrar que nessa olaria não havia máquina de cerâmica, tudo era primitivo, artesanal, desde abrir o barreiro, com enxada, cavador, pá e picareta, até moldar o barro em forma de madeira e transformá-lo em objetos manufaturados para o mercado livre. Lembro-me que naquela tarde, depois de muita peraltice, chamou a minha atenção uma revista com homens e mulheres na folia de carnaval, mulheres quase nuas e homens fantasiados de mulher: vestido, peito postiço, colares, pintura e sapato alto. Um dos circunstantes, disse-me que só saía no carnaval travestido de mulher, na minha inocência infantil, respondi-lhe que “viado é que usa roupa de mulher”, foi um constrangimento, naquela época, ninguém esperava que uma criança saísse com uma tirada daquela. Há a necessidade de esclarecer que eu não sabia o significado verdadeiro de “viado”, apenas, possuía a noção que era o homem que se vestia de mulher. Naquela época, esse “animal” era raro e quando aparecia era rejeitado com dureza pela família e pela sociedade, muitos eram sodomizados e mortos pela intolerância da maioria. A olaria foi o meu primeiro laboratório do exercício de pensamento e de criatividade, enquanto eu moldava homens e mulheres de barro, a imaginação puxava a criatividade para encontrar linhas, curvas e formas perfeitas. O segredo do sucesso em qualquer atividade humana é sua capacidade de criação. A invenção e a criatividade são atributos dos seres humanos, os animais não inventam nem são criativos, eles podem até imitar, fazer diferente, criar, jamais. João-de-barro repete a mesma "casa" desde que o mundo é mundo. Muita gente na vida é como joão-de-barro, repete sempre o que já foi feito, não cria e não inova. Viver bem é construir a vida com tijolos queimados, bem amarrados em base rochosa. A vida não aceita tijolos quebrados, crus, sem rejuntamento, sem amarração, quando negligenciamos essa construção, a tendência é cair a cumeeira.
Autor: Rilvan Batista de Santana
Licença: Creative Commons