Manolo - R. Santana
Manolo conheceu Laika em uma praça não muito distante de sua rua. Não foi amor à primeira vista, ela resistiu, adiou encontro, argumentou compromisso, passeou com outro em sua rua para dissuadi-lo, mas Manolo não desistiu, conquistar Laika passou ser obsessão, questão de honra, como “água mole em pedra dura, tanto bate até que fura”, assim, conseguiu conquistá-la. Algum tempo depois, veio-lhe a recompensa: “onde ele vai, ela vai atrás”, um nasceu para o outro e ambos nasceram para o mundo, todos dizem que ela é igual chiclete, grudou nele para não mais sair.
Ultimamente, eles vivem num perrengue de dar dó, se comem de dia, não comem de noite, mas se conformam, porque, tem um ao outro, situação ruim que se dane, acreditam que depois de uma noite tempestuosa, poderá vir dia de sol, o importante, eles estarem vivos e felizes, o resto que se lixe! Se não fosse pelo apego de Manolo por uma amizade antiga, eles não estariam mais naquela rua, naquele bairro, naquela cidade.
Laika alimenta deixar descendente, seria desperdício passar por esse mundo e não gerar outro ser que lhe fosse semelhante no físico e no coração, mais no coração que no físico, ainda mais por ter um companheiro bonito, bondoso e corajoso quanto Manolo, portanto, sua prole seria bem-vinda se não fosse a resistência de seu macho em evitar outro serzinho, pelo menos, enquanto eles não tivessem casa própria e comida sem sacrifício.
Manolo nasceu bravo, mas dócil e fiel, aliás, fidelidade é seu traço maior, enquanto Laika é brava, delicada, porém, menos fiel. Se não fosse a dureza de atitude do seu companheiro, ela já estaria nas garras de outro macho, porém, ele é prestimoso, fiel e carinhoso e, ela foi ficando e ficou.
Naquele dia, ambos estavam inquietos, irritados, nervosos, com feelings aguçados, sentiam que algo estava para acontecer. Perguntavam: - o quê? Mas, não obtinham resposta. Se fosse bom, seria bom para ambos, se fosse algo mau, o mal seria, também, para os dois. Laika só tinha medo de algo que lhe separasse de Manolo, preferia morrer! ...
À noite, cedo foram dormir, às 2 horas do outro dia, acordaram com o perigo...
[...]
Naquele dia, também, Danilo Moretti não pregou os olhos logo, pensava em sua vida, o destino que lhe trouxe até ali há 30 anos, com a mesma a força que as ondas agitadas do mar empurram as coisas para costa.
Naquela época, jovem, bancário de banco do governo e a cara metade, médica, boa situação financeira, dois pirralhos de 4 anos e 6 anos de idade e uma pirralha de 3 anos de idade, foi obrigado deixá-los, tangido pela droga. No início, ele usava cocaína e outras drogas de rico e quando a mulher o expulsou de casa por não aguentar mais aquela situação de vício, ele saiu da cidade, tornou-se morador de rua, pedinte, mudou de cocaína para maconha e da maconha para pedra de crack e o inferno lhe acolheu em vida.
Acostumou-se com a miséria e a falta de identidade. Naquele submundo ninguém tinha nome, mas apelido, de “Danilo Moretti” passou ser conhecido por “Lopeu”, desconhecia a origem do apelido e quando alguém lhe questionava o significado, ele respondia rindo que deveria ser corruptela de “Lopes”, se não fosse, nenhuma importância faria para o outro, continuaria Lopeu.
Na rua, não aprendeu roubar nem matar pra roubar, resquícios morais de antes não tinham desaparecido do seu ser, não tinha natureza, preferia sustentar seu vício pela mendicância ou prestar um ou outro serviço esporádico quando alguém lhe contratava, geralmente, lavar um carro, capinar um quintal, ajudante de pedreiro, serviço sem qualificação nem carteira profissional assinada. Não criava limo no lugar, não criava vínculo com o outro, quando acontecia, ele mudava de rua e de cidade.
Gostava mesmo, era de perambular aqui, ali, acola, saco nas costas cheio de apetrechos pessoais, comia onde lhe desse e dormia onde lhe parecesse seguro com seu cachorro que pra completar tinha arranjado uma fêmea pra lhe seguir.
O cachorro surgiu em sua vida não sabe como, amor à primeira vista, lhe matou a fome um dia, no dia seguinte continuou e continuou sempre, ambos tinham natureza de andarilho, jamais eles se separariam, pois se completaram no infortúnio da vida.
Às vezes, aparecia algum curioso para lhe bisbilhotar o passado, Danilo Moretti pouco falava ou nada falava, quando incitado, dizia que o passado fechou a porta e jogou a chave fora.
Foi internado duas vezes por overdose, da última vez, passou 6 meses numa casa de apoio do governo, tomou vergonha na cara e, determinado, abandonou o vício.
À noite, cedo foram dormir, às 2 horas do outro dia, acordaram com o perigo...
[...]
Sexta-feira 13, mês de abril, deste ano, às 2:00 horas, a luz do poste entrava pelas frestas do barraco, quando Danilo Moretti é acordado com chutes no traseiro. Dois sujeitos exigiam-lhe que ele desse conta de uma mochila, aturdido pela hora e pelo sono, ficou sem saber lhes responder de imediato, o mais moço dos indivíduos e mais inconsequente, sacou uma arma e o ameaçou:
-Vagabundo, que é de a mochila?
- Mas... não... sei lá!
- Não se faça de desentendido, seu maluco!
- É o primeiro dia que pernoito neste barraco, rapaz!
- Se não me devolver a mochila, é o primeiro dia e o último, seu doido!
- Vai procurar sua mochila onde perdeu, saia que quero dormir...
- Eu vou contar de 1 até 10, se você não abrir essa matraca, vou estourar seus miolos! – na iminência do perigo, Danilo Moretti ergueu-se rápido e tomou distância segura do indivíduo, enquanto ele contava com o revólver apontado:
- Um, dois, três... – Danilo Moretti deu um grito:
- Manolo! - o cachorro num átimo de tempo abocanha o punho do sujeito com tal força que o revólver cai no chão, enquanto, Laika pula com igual agressividade e firmeza no pescoço do outro marginal. Os homens sob o domínio dos cachorros gritam:
- Socorro! Socorro! Socorro!...
Danilo Moretti, com o revólver em punho, chama os cachorros e os homens com ferimentos lastimáveis no antebraço, peito e pescoço, são atendidos pelo SAMU, escoltados pela polícia, foram para o “Pronto Socorro” e, levados depois para delegacia e aguardarem audiência de custódia. Na saída, o oficial comandante recomendou:
- O senhor vá dormir, amanhã cedo, vá à delegacia do bairro!
Depois do furdunço, salvo dos marginais pelos seus cachorros, Danilo Moretti passou refletir e achou estranho que os meliantes, em nenhum momento, fizeram alusão à mochila, ele também, não a aludiu, preocupou-se em defender os cachorros, que agiram com agressão para lhe defender da morte, por isto, prometeu a si, procurá-la, assim que a noite se fosse.
Pelo sim, pelo não, teria que sair dali no outro dia, pois os elementos não ficariam detidos por muito tempo, foram mais vítimas do crime, portanto, eles voltariam para encontrar a cobiçada mochila.
[...]
Naquela manhã, Danilo Moretti apresentou-se à delegacia de polícia para colocar em pratos limpos a tentativa de morte que foi vítima à noite. No início, houve uma certa resistência dos assessores encaminhá-lo ao delegado, de saco de aniagem, roupa velha e chinelos, não era bom cartão de visita em nenhum lugar, mas quando o doutor delegado soube que ele tinha colaborado para aqueles meliantes da noite fossem detidos, fê-lo entrar:
- Senhor Lopeu, como tudo aconteceu? - Explicou ao delegado que estava dormindo e foi surpreendido com chutes no bumbum e ameaças de morte se ele não desse conta de uma ”mochila”. Disse-lhes que não sabia, que estava ali àquela noite, uma alma boa lhe tinha dado o barraco para morar enquanto não fosse construir, daí o rapaz mais moço e mais agressivo, sacou de um revólver e o ameaçou, na casa do sem jeito, deu voz de comando aos seus cachorros, foi salvo e apreendeu a arma que foi entregue aos policiais. Findo o relato pelo mendigo, o delegado voltou-se para um homem bem vestido que parecia esperar o desfecho daquela conversa:
- Doutor, acho que neste caso aplica-se o adágio popular: “ladrão que rouba ladrão, tem cem anos de perdão”. Ele roubou do senhor, alguém roubou deles, agora, os esforços da polícia serão muito mais para recuperar os seus bens. Qual o valor estimativo, hoje, do roubo?
- Bem... não sei....talvez...acho que... uns R$ 500.000,00 (Quinhentos mil reais), uma parte em dinheiro, outra parte, em joias, portanto, um prejuízo...
- Doutor José Maria, irei colocar mais gente na rua até descobrirmos o paradeiro dessa fortuna. Amanhã, eles terão uma audiência de custódia. Quem sabe se eles não darão informações mais precisas ao excelentíssimo juiz? – o mendigo cheio de dedos, pediu ao delegado um aparte:
- Doutor, depois que os rapazes foram presos, procurei a dita mochila ao amanhecer e a encontrei embaixo de Laika. O motivo de minha vinda, hoje, aqui, foi para lhe entregar essa mochila, não sei o que há dentro, mas deve ser o produto do roubo – tirou a mochila do saco de aniagem e a entregou ao delegado.
- Doutor José Maria, olhe seus pertences!
A euforia foi geral, Lopeu foi abraçado e agradecido, várias vezes, pelo Dr. José Maria. O delegado quis conhecer sua história de vida. Achou-o muito articulado e inteligente para um mendigo. A mídia foi informada do gesto do mendigo e a honestidade do mendigo virou notícia.
[...]
- Filho, é o seu pai!
- Mas mãe, esse mendigo é muito velho, pra ser o nosso pai. Com quantos anos, ele está hoje?
- Ele deve estar com 56 ou 57 anos...
- Então, esse aí deve ter 65 anos ou 70 anos de idade, ademais, chama-se Lopeu!
- Meu filho, o desleixo avilta. Dê-lhe um banho de loja, faça-lhe a barba e o cabelo, e, não será mais chamado de “Lopeu”, mas de Danilo Moretti!
- Duvido!...
[...]
- Manolo, a TV marcou uma entrevista comigo às 16 horas, não sei o que eles querem, já lhes disse que não quero aparecer, fiz a minha obrigação, nada mais... não é Manolo?
Silêncio...
Às 16 horas, daquele dia, na praça do bairro, Moretti barbeado, cabelo feito, roupa e sapatos novos - patrocínio da TV e empresários – e, um aparato de câmaras, cabos-mans e entrevistador, Danilo Moretti na berlinda, era o centro das atenções de curiosos que passavam e de muitas outras pessoas:
- Quanto tempo o senhor mora na rua?
- Há 30 anos!
- E, sua família?
- Desde essa época, não temos contato!
- Seu nome é Lopeu?
-Sim!
- Chama-se Danilo Moretti, não é?
- Ele morreu...
- Foi? Para as pessoas que vieram lhe ver, não!
- Quem veio me ver?
- Olhe para traz...
Moretti ficou pasmo, num primeiro instante, reconheceu a ex-mulher e deduziu que as demais pessoas eram os seus filhos. O mais velho dos três não negava sua paternidade pela semelhança, os outros dois filhos pareciam com a mãe, mas tinham muito do pai.
Choros, abraços e beijos marcaram o reencontro.
Autoria: Rilvan Batista de Santana
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