Cacau e peleja - R. Santana
I
Joaquim Santos Almeida, conhecido por amigos e inimigos por “Kinkim”, do balaústre da sua casa, olhava a beleza que ficava abaixo do outeiro, na entrada da fazenda Angicos: uma cancela, uma estrada de pedras brutas multiformes com mais ou menos 500 m de comprimento por 8 m de largura, ladeada por palmeiras imperiais, mudas importadas de longe que lhe custou “os olhos da cara”; uma enorme represa, onde gansos e patos davam o toque de beleza ao cenário e os gramados laterais arborizados completavam a visão bucólica. Tudo aquilo não tinha sido construído de estalo, mas com muito trabalho, suas terras de mata e cacau formavam um grande latifúndio, possuía terras cultivadas e incultas às margens do Rio Pardo, no vale do Rio Panelão e às margens do Rio Panelinha.
Kinkim e seu amigo Natalino Pataxó vieram para o Vargito na 2ª. Expedição liderada pelo médico José Elias Ribeiro, ambos, com um pouco mais de 17 anos de idade. Derrubaram matas, cabrocaram capoeiras, demarcaram terrenos e plantaram cacaueiros, mataram quem lhes quis atrapalhar, construíram casebres de pau a pique entrelaçados de varas amarradas com cipós em forma de quadrados e preenchidos de barro, casebres cobertos de piaçava, outrora, usavam as copas mais altas das árvores para passar a noite.
No início do desbravamento, eles se alimentavam de peixes, tatus, saruês, quatis, carne-seca, toucinho, dobradinhas, farinha, sal e pimenta, de quando em vez, feijão e carne de boi e carne de porco adquiridas na feira-livre do Vargito. Além de lhes faltarem recursos financeiros, sem produtividade de cacau, toda economia era bem-vinda. Anos depois, lá para o ano de 1935, eles eram ricos fazendeiros e inimigos figadais.
Kinkim tinha ambição desmedida, aumentou suas terras comprando-as por vinténs ou expulsando posseiros pelo argumento do bacamarte e do parabélum. Sovina, tudo que produzia em suas terras, o dinheiro era guardado sob sete capas. Não desperdiçava nada, até as mulheres de vida fácil do povoado Vargito não lhe arrancava dez-réis de mel coado, além do combinado.
Kinkim não gostava de cachaça, não fumava, não jogava, seu único vício, era o bate-coxa no cabaré de Maria João. Gostava de andar sozinho, dizia que “puta só e ladrão só”, ou, “melhor sozinho do que mal acompanhado”. Quando enricou, junto com o dinheiro e os bens, vieram atrás de si, muitos inimigos, por conta disto, sofreu dois atentados rechaçados por tiros fatais ao inimigo, porém, num deles, o cavalo foi morto. Daí em diante, passou ser acompanhado por jagunços guarda-costas armados até os dentes com carabinas e pistolas.
Natalino Pataxó tornou-se também homem rico, não tanto quanto Kinkim, não tinha a mesma ambição desmedida do outro, fazendeiro de 2000 arroubas de cacau que lhe propiciou ter casa em Itabuna para manter os meninos na escola e o filho mais velho foi estudar engenharia em Salvador. Também, não tinha vícios, de quando em vez, fumava um charuto para distrair-se não por necessidade.
Jovem, teve que enfrentar com clavinote e pistola, índios indolentes e jagunços travestidos de posseiros para se estabelecer, porém, intuitivamente, sempre teve bom senso para separar o certo e o errado. Sempre soube separar o pioneiro do desbravador sanguinário, não atacava, contra-atacava, rompeu a amizade com Kinkim porque ele era desprovido de senso moral, ele não separava a justiça da injustiça, “os meios justificam os fins”, com este marco, ele ceifou a vida de muitos inocentes para construir seu latifúndio.
Natalino herdou dos pais o sentimento religioso, sua mãe era papa hóstia, seu pai não ficava atrás, a Bíblia era o seu livro de cabeceira, não perdia uma missa, chovesse ou fizesse sol, não tinha inimigos, pequeno agricultor, sua fazendola nunca foi além de 200 arroubas de cacau e, louvava a Deus todos os dias, seus filhos não passarem fome e levarem uma vida digna. Natalino saiu de casa a contragosto, ele e a mulher passaram dias na igreja orando para que nada lhe acontecesse, só relaxaram a devoção quando souberam que o filho estava no Vargito são e salvo.
Por isso, não se tomou como surpresa o misticismo de Natalino depois de maduro. No início, ingressou numa igreja evangélica, depois pelos caminhos tortuosos da vida, ele começou a frequentar um candomblé da redondeza e com a morte do “Pai de Santo”, ele assumiu os trabalhos com o título: “Pataxó Babalorixá”. Algum tempo depois, transferiu o terreiro de sua seita para sua fazenda num grande e suntuoso caramanchão.
Tinha consciência que corria perigo de morte desde que recusou, peremptoriamente, vender suas terras da fazenda Jupará para Kinkim, pois seus 150 hectares, afora a produtividade de cacau, possuía boa aguada, 30 hectares de mata, 40 hectares de pastos piquetados e, inviabilizava seu arquiinimigo estender suas terras pelo lado norte de sua fazenda. Não tinha medo dele tête-à-tête, porém, o conhecia desde o tempo das “vacas magras”, o homem era mais traiçoeiro do que corajoso, se vacilasse, ele viraria comida de urubu por algum jagunço de seu desafeto, escondido atrás de uma jaqueira ou um pé de vinhático, a soldo de Kinkim, por isto, nunca se desapartou de um parabélum ou um clavinote.
II
Natalino Pataxó teve razão em alimentar por muito tempo a covardia de Kinkim, naquela manhã, “Joaquinzinho” presenciou a conversa particular do seu pai com um conhecido pistoleiro:
- Vesgo, ele vai ver a mulher e os filhos em Itabuna!
- Quando?
- Dia 30, deste mês!
- Ele tem fama de bruxo...
- Supersticioso?
- Não!
- Medo é pra maricas, rapaz!
- Eu sou homem de fé...
- Quer desistir?
- Não! – Completou:
- Não sou homem de mijar acocorado, patrão!
Silêncio...
- Quanto é o serviço?
- Dez contos de réis!
- Tudo isso?
- É bagatela. Ainda lhe trago a cabeça e os colhões!
´-Tá doido, Rapaz!?
- É costume!
- Negócio fechado. Daqui a 15 dias compareça aqui, quero lhe dar uma carabina nova e munições, vá lá que surja muita gente lhe...
- Patrão, desculpe-me, mas não uso ferramenta alheia, tenho por costume fazer uma marca na coronha do meu clavinote, cada vez que eu envio um daqui pra o lado de lá! – ele mostrou a coronha da arma toda picotada.
- Até mais ver!
- Até!
III
Joaquinzinho não aprovou a conversa de Vesgo e seu pai, inclusive, tiveram uma discussão. Não compreendia aquela inimizade, pois na mocidade ambos eram carne e unha. Trabalharam como um condenado, construíram suas fazendas, até tinham casa em Itabuna para que os filhos pudessem estudar. Entendia que matar um homem só em legítima defesa, principalmente, se esse homem era compadre recíproco. Gostava do padrinho e faria tudo para evitar que ele fosse assassinado. Gostava também do seu pai, mas depois que ele começou estudar na capital, lhe reprovava o comportamento desumano, primitivo, sua ambição não tinha limite, pressentia que seus últimos dias de vida não tardariam chegar.
Mantinha boa relação com Natalino, a contragosto do seu pai, argumentava que o padre da paróquia dizia que “o padrinho é um segundo pai”, por isto, não tinha nada a ver com suas desavenças.
Seu padrinho o tinha como filho, lhe dispensava os mesmos cuidados que dispensava aos próprios filhos, até a idade de 12 anos, passava mais tempo na casa do padrinho que na casa dos seus pais, depois do rompimento de amizade dos adultos, é que passou se encontrar de quando em vez com Natalino, portanto, vê-lo morrer numa tocaia promovida pelo seu pai, seria o mesmo o que Judas Iscariotes fez ao Cristo.
Enfim, às escondidas, seu padrinho dava-lhe uma mesada mensal para que não lhe faltasse nada em Salvador.
IV
Naquele dia 30 de junho de 1937, às 17 horas, Natalino e mais 3 camaradas, encilharam os animais para seguirem viagem até Vargito de lá para Itabuna, que se o tempo tivesse bom, eles levariam 2 dias na viagem, mesmo com trechos íngremes, riachos e ribeirões para os cavalos atravessarem, se o tempo tivesse chuvoso e relampejando, o tempo na estrada seria maior. De sua fazenda Jupará até o Vargito dista 1,5 légua, por isto, ele e os camaradas programaram sair mais cedo e pernoitarem no povoado. Além dos animais de montaria, levaram mais 3 animais de cargas que seriam usados no retorno com os caçuás de mantimentos.
Ardiloso, dessa vez não quis viajar sozinho e preparou vários artifícios para não ser pego desprevenido em alguma tocaia desde que recebeu um bilhete de Joaquinzinho: “...padrinho o senhor está na mira do clavinote de Vesgo, cuidado quando for viajar”. Por isto, quando saiu do descampado ainda dia e entrou na mata, frouxou o cabresto de uma égua e esperou sua reação, repassou as estratégias combinadas com os camaradas, à frente do grupo, um boneco tamanho homem, vestido com um capote colonial de luvas e chapéu confundia qualquer cabra por mais sagaz que fosse, não tardou a égua sair do grupo e adentrar na mata atrás de algum cavalo ali, enquanto o boneco avançava e recebia uma saraivada de balas, ao mesmo tempo, todos saíram agachados em direção contrária à linha de fogo.
Quando Vesgo entendeu que havia caído numa cilada quatro carabinas miravam suas costas, tentou reagir, mas uma bala certeira despedaçou a coronha de sua arma, enquanto Natalino gritava: “A próxima será em sua cabeça, levante as mãos!” Vesgo, boca dura, quis dar uma de pistoleiro ético e recusou-se falar do mandante, então, 2 camaradas amarraram o pistoleiro, jogaram-no em cima dum cavalo, uma corda foi laçada no seu pescoço e a ponta amarrada num galho de ipê amarelo, Natalino Pataxó argumentou:
- Cabra, aqui tem 4 carabinas apontadas pra você, se quiséssemos já tínhamos lhe matado e jogado seu corpo no pasto para os urubus, porém, dou-lhe a chance de viver se disser quem mandou me matar (ele sabia...), mas se insiste vou soltar este cavalo, você sabe o que irá lhe acontecer. Vou contar até 10:
- Um, dois, três, quatro, cinco, seis... – na casa do sem jeito, Vesgo gritou:
- Foi seu Kinkim!!!
V
Na manhã seguinte, Natalino abre a cancela da fazenda Angicos com 6 homens armados com carabinas engatilhadas, parabéluns pendentes nos arções da sela, peixeiras nas cinturas, numa distância prudente, Natalino Pataxó, grita:
- Kinkim! Kinkim! Kinkim! – ele aparece com dois cabras:
- Quem lhe autorizou você entrar em minha propriedade? – os cabras se mexeram, mas foram desarmados pelo pessoal de Natalino numa ação relâmpago...
- A polícia! Você conhece o sargento Barreto? – Kinkim empalideceu, respondeu:
- Não! Não tenho nada ver com a polícia, saiam de minhas terras! – O sargento não aguentou:
- O senhor está preso!
- Por quê?
- Mandou assassinar Natalino Pataxó!
- Quais as provas?
- O pistoleiro Vesgo preso, mais dez contos de réis! – ele tentou reagir, mas o sargento tirou sua arma do coldre com um tiro.
- Mãos pra cima, está preso!
Cena macabra: o temido fazendeiro Joaquim Santos Almeida em cima do seu cavalo com os punhos atados, desarmado, seus asseclas atrás, sete carabinas prontas para qualquer eventualidade, cavalgavam lentamente em direção ao Vargito. Começava, ali, a Lei dos homens ser cumprida naquelas terras do sem fim.
Autor: Rilvan Batista de Santana
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