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“O Corcunda de Notre-Dame” R. Santana

“O Corcunda de Notre-Dame”
R. Santana

Não! Não! Não é o “Quasimodo” do romance de Victor Hugo. Não é o homem coxo e deformado que tocava os sinos da Catedral de Paris, o homem que se apaixonou pela cigana Esmeralda. A cigana que foi vítima de Cláudio Frollo, que amou Febo e foi amada até a sepultura por Quasimodo. O nosso “Corcunda de Notre-Dame” chamava-se Raimundo Pinheiro, mas gostava de ser chamado de “Pinheirinho”. Pinheirinho tinha certo mondrongo nas costas, todavia, andava mais ereto do que Quasimodo e não tinha o olho comprometido, sua postura era quase normal em relação ao monstro de Victor Hugo.

Alguém com fumos de intelectual lhe deu o apelido de “O Corcunda de Notre-Dame”, certo seria se lhe fosse dado: “O Corcunda de São Caetano”, mas brasileiro é pedante, adora estrangeirismos, notadamente, os galicismos e os anglicismos, lhe deu o apelido francês. Tanaguchi jura de joelhos e mãos em oração que o brasileiro tem complexo de cachorro vira-lata, não perdeu ainda o complexo de inferioridade ao longo dos anos, sempre o que é de fora é mais bonito e mais genial.

A maioria dos meninos, a faixa etária não passava dos 8 anos idade, Raimundo Pinheiro deveria, naquela época, ter uns 16 anos de vida, mas esta diferença de idade não nos afastava, mas nos aproximava pelo seu diferencial, é que Pinheirinho era desenhista e um exímio construtor artesanal de brinquedos de madeira, principalmente, os caminhões da “Ford”, da “Chevrolet” e da “Mercedes Benz”. Ele era fascinado pelos modelos da “Mercedes Benz”, e os construía com tanta perfeição que os modelos das lojas de brinquedos daquela época perdiam longe: cabina, volante, faróis (alimentados por pilhas de rádio), rodas revestidas de borracha, carroceria, estepe, buzina, pintura e etc.

Pinheirinho era o nosso “Pop Star”, todos o admiravam, não havia bullying por causa do seu defeito físico, quando ele admoestava algum moleque, este fugia e saía gritando: “Corcunda de Notre-Dame!”, “Corcunda de Notre-Dame!”, “Corcunda de Notre-Dame!”, ele não xingava, não corria atrás para um corretivo no moleque, não se sabe se por dificuldade de locomoção, devido sua deformidade ou por sua natureza cordata, ninguém nunca o tinha visto numa briga nem falar um palavrão, era adolescente gentleman.

Pinheirinho não tinha a altura de sua idade, era pequeno e rechonchudo, transitava bem entre os adultos e os meninos mais novos e, sem complexo. Alegre, festeiro, doido por festa junina e carnaval. No São João, ele não tomava licor de jenipapo, nem ponche, nem outra bebida que contivesse álcool, empanturrava-se de canjica, milho cozido e assado, pamonha e amendoim. Depois que se empanturrava de comida de milho e suco de jenipapo, reunia a garotada da rua, cada um com sua mochilinha de fogos, acendia a fogueira de sua casa e liderava os moleques na queima de bombas, traques, chuvinhas, cobrinhas e traques de bater, se algum moleque trouxesse uma bomba mais potente, ele não deixava explodi-la, evitava acidente. Se algum fogo desse chabu por defeito de fabricação, ele não deixava reutilizá-lo e alertava: “... pode explodir!”

Quando chegava perto de meia noite, os fedelhos eram recolhidos pra cama pelos pais, enquanto Pinheirinho ia balançar o esqueleto no forró dum vizinho de sua casa, então, participar de quadrilhas juninas no caramanchão da praça. Às vezes, era barrado nas festas por causa de sua altura, mas como era festa de família, festa folclórica e como era dado com todos, sempre era admitido no ambiente, aparecia alguém pra argumentar: “ele só não tem tamanho, mas pegou carona na arca de Noé, kkkkk”, assim, tornou-se o festeiro oficial da pequena comunidade do Bairro São Caetano.

No carnaval, ele fazia sua própria fantasia com folhas de tabuas pintadas e capim seco, por mais que soubéssemos que aquele “bicho” de máscara era Pinheirinho, corríamos de medo. Como não tinha dinheiro pra comprar lança-perfume, enchia uma mamadeira de água de cheiro natural pra esguichar na molecada. Os confetes e os adereços eram dados pelos seus pais. Ele gostava de lançar confetes nas moças de sua idade como galanteio.

Para nós, os fedelhos, ele era admirado por seu artesanato, por sua arte, seu gênio criativo e os adultos admiravam-no pela promoção de festas nos feriados. Os adultos participavam com os recursos, Pinheirinho com as ideias e a execução. Não me lembro da data, mas lembro-me que em agosto, um dia do mês era reservado pra atividades folclóricas. Os adultos gostavam brincar de cabra-cega no pote, pau-de-sebo, corrida de saco e corrida de jegue. A meninada brincava de carniça, de amarelinha, de esconde-esconde, de gude, passa anel, as cinco-Marias e empinar papagaio.

Pinheirinho também era aficionado por jogo de bola, um perna-de-pau, os homens não o deixavam jogar, sua deformidade era um empecilho físico, por isto, ele recorria à tolerância dos meninos, o importante não era competir, mas participar.

Torcedor abusado quando seu time de várzea jogava, certa feita, quase foi agredido por um jogador de outro bairro que não o conhecia, alguém mais forte interveio: “olhe rapaz, você é grande e forte, não tem vergonha de agredir o nosso pequeno gandula!?”, o jogador se desculpou e voltou pra o campo.

Naquele dia, o ceu em bruma ameaçava grande queda de chuva, todos os habitantes sem saber o porquê sentiram um enorme presságio, um arrepio coletivo inusitado, uma premonição, é que chegou a notícia de morte prematura por afogamento de Raimundo Pinheiro, o nosso querido Pinheirinho. As explicações vieram logo: ele tinha por costume tomar banho todas as tardes, já perto de anoitecer, no Rio Cachoeira, este rio em tempos idos, quando ainda não era poluído, era bom pra nadar e pescar e foi na pesca que o nosso bom e querido “Corcunda de Notre-Dame” se foi ao pescar um acari.

O Acari é um peixe cascudo de tamanho pequeno que gosta de se entocar nas pedras, é muito apetitoso quando cozido em óleo de coco e dendê. Há uma técnica apropriada pra lhe pescar, o pescador não pode de nenhuma forma puxar o acari com a mão por cima, pois ele incha e o pescador fica com a mão presa entre as pedras e ninguém pode salvá-lo. Os pecadores profissionais não correm esse risco, usam um arpão e o fisga sem nenhum dano.

Pinheirinho foi vítima dum miserável acari! Ele nadava que só piaba, pescador de quarto costado, era useiro e vezeiro na pesca do cascudo, mas nesse dia, sem arpão, meteu a mão na toca erradamente e lá ficou.

Estirado no caixão, Pinheirinho parecia um anjo, seu mondrongo assentou-se e, horizontalmente, dormiu pra sempre! Morreu o nosso “Quasimodo”, morreu nosso herói!...



Autoria: Rilvan Batista de Santana
Licença: Creative Commons
Itabuna, 04 de agosto de 2017
Rilvan Santana
Enviado por Rilvan Santana em 04/09/2017
Alterado em 05/09/2017


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Imagem de cabeçalho: Sergiu Bacioiu/flickr