Textos


Bullying
R. Santana

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     Em mil novecentos e oitenta e quatro, quando colocar apelido em alguém, zombar o sujeito intencionalmente e repetidamente, não eram atos infracionais previstos no Código Penal, mas brincadeira de mau gosto, às vezes, acabava em morte. Naquela época, nas escolas e, em nenhum lugar, ninguém conhecia o termo inglês “bullying”, todavia, zombar, tripudiar, ridicularizar e sacanear eram termos conhecidos. Ninguém levava a sério problemas psicológicos, aliás, eles eram resolvidos em brigas de rua. Quantas vezes fomos testemunhas de brigas de estudantes por causa de apelidos físicos ou morais? Inúmeras vezes. Diz o provérbio popular que “quem conta um conto, aumenta um ponto”. Juro por “estes olhos que a terra há de comer”, que serei fiel ao conto que na mesa de bar, entre uma cerveja e outra, alguém me contou. Não sei se tenho o talento pra contar essa história ou estória tão bem quanto esse amigo de boteco, porém, importa a mensagem e o leitor amigo, de imaginação brilhante, dê a esse conto os retoques necessários pra que o torne machadiano perfeito. Numa cidade “X” do interior baiano, um jovem trabalhador rural, era conhecido pelo apelido de “Cabeção”. Nem os parentes chamavam-no pelo prenome ou nome, mas pela alcunha de “Cabeção”. Se um cobrador desavisado perguntasse em sua rua o nome de: “José Alberto Ávila Santana”, iria receber um seco: “não o conheço!”, mas a cidade “X” inteira conhecia: “Cabeção”. Porém, um ex-colega de escola de José Alberto, cismou de apelidá-lo toda vez que o encontrava, aqui, ali, acolá... Quando o encontrava na igreja, na Praça da Matriz, no campo de várzea, na feira-livre, no mercado, enfim, em todos os lugares, era “cabeção” pra lá, “cabeção” pra cá. José Alberto até que se tinha acostumado com o apelido, mas seu ex-colega fez de sua vida um inferno de zombaria, de caçoar, de humilhação etc. O sentimento de ódio, de revolta, começou crescer no íntimo de “Cabeção”, a razão foi substituída pela ira e o desfecho ocorreu em um dia de domingo quando José Alberto usufruía os carinhos e os braços de sua amada na praça principal da cidade “X”: “Cabeção, já pensou essa cabeçorra com par de chifres? Ah, ah, ah... “ , foi o bastante, José Alberto armou-se com revólver e quando o reencontrou logo depois, deu-lhe vários tiros e seu ex-colega veio a óbito no hospital. A cidade ficou em polvorosa, os que não os conheciam, achou o crime fútil e que o criminoso merecia uma pena severa. Os que os conheciam, previram o crime, pois a vítima tornou-se inconveniente, não escolhia hora nem lugar para depreciar e ridicularizar José Alberto.


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     O criminalista Giovanni Rossetti, sem demérito dos demais advogados, era inteligente, erudito, arteiro e possuía o dom da palavra, todavia, com a morte do filho mais velho em acidente de carro, seu humor e sua vontade de viver foram lá pra baixo: do respeito jurídico ao ostracismo. Ninguém mais lhe confiava uma causa, pois o velho advogado trocou o livro pelo whisky, a cerveja, o aguardente 51, e, quando não tinha mais dinheiro, aceitava de bom grado uma cachaça “murcha venta”. Mas, Dr. Giovanni era um homem bom, homem de muitos amigos e muitos admiradores que desejavam que ele tivesse o destino da Fênix, que renascesse das próprias cinzas e, dentre esses amigos fiéis, o advogado trabalhista, Dr. Edwaldo Sampaio Jr se destacava. Quando “Cabeção” vitimou seu ex-colega de escola, homiziou-se na fazenda de Dr. Sampaio que o deixou lá até passar o flagrante, findo o flagrante, o entregou à justiça, mas no compromisso de lhe oferecer apoio jurídico. O júri foi marcado depois de algum tempo, cumprido os trâmites legais. Dr. Edwaldo Sampaio Jr recorreu aos préstimos do velho amigo, Giovanni Rossetti, uns seis meses antes, depois de muita luta pra encontra-lo sóbrio e outra luta para aceitar a causa: “Sampaio, estou fora de forma, há 2 anos não piso os pés no fórum, perdi a credibilidade, o respeito dos meus pares...” Dr. Sampaio, não desistiu: “Não é verdade Giovanni, ainda és o melhor criminalista da Região, por outro lado, tu conheces o rapaz, vais deixa-lo à toa, a mercê de grandes advogados contratados pela família da vítima?”, ele permanecia irredutível, mas Dr. Sampaio lembrou-lhe um fato que o fez mudar de opinião: “Olhe meu caro, foi “Cabeção” que deu os primeiros socorros no acidente de Lucas, eu e tu lhe seremos gratos para sempre; tu eras o pai, eu, era o padrinho de Lucas”.


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Seis meses depois:

     O auditório do fórum da cidade “X” estava repleto no júri de José Alberto: os parentes da vítima, os parentes do criminoso, jornalistas, repórteres de rádio da capital soteropolitana, estudantes de direito, advogados e gente do povo. Muitos, movidos pela curiosidade de verem o pinguço advogado de defesa. Muitos apostavam que Giovanni Rossetti entraria no tribunal grogue ou quase grogue e a pena do criminoso seria a máxima, pois a família da vítima havia contratado um advogado de renome da capital, além de um assistente para o promotor, portanto, ases do Direito na acusação, mas no primeiro momento, todos foram tomados de surpresa e expectativa, porque Giovanni Rossetti adentrou a sala do tribunal, sóbrio, garboso, cheio de si, e, um calhamaço de documentos embaixo do braço. A sessão teve início, o oficial de justiça anunciou a entrada do juiz-presidente e todos ficaram de pé. Os 21 cidadãos intimados para serem jurados se apresentaram, como de praxe, 3 de cada lado foram dispensados, 7 jurados foram escolhidos por sorteio e formou-se o Conselho de Sentença. O juiz, a acusação e a defesa formularam perguntas ao réu. O juiz fez uma extensa explanação do processo com fatos e provas e as conclusões da acusação e da defesa. Cinco testemunhas da defesa e 5 testemunhas de acusação foram ouvidas. As testemunhas de acusação limitaram-se dizer que elas conheciam a vítima, uma pessoa extrovertida, brincalhona, natureza pacífica, que não merecia ter sido assassinada por um ex-colega de escola por motivo tão fútil, principalmente, que ninguém conhecia o nome verdadeiro do criminoso, mas pela alcunha de “Cabeção”. As testemunhas de defesa acrescentaram que a vítima não trabalhava, vivia a expensas da família, deixou os estudos cedo, embora cordato, tinha atitudes de moleque, brincadeiras inoportunas, e gostava de zombar as pessoas menos afortunadas. E, gostava de tripudiar, ridicularizar e sacanear o réu, não respeitava hora nem lugar. A acusação e a defesa fizeram algumas perguntas de praxe e os debates deram início. O promotor e os seus assistentes usaram suas 2 horas para incriminar o réu. Eles sustentaram que o crime tinha sido premeditado, doloso (outras qualificações), que se fosse matar por causa de apelido, metade da população da cidade “X” seria dizimada, pois todos possuem apelidos na família, na escola, no clube de futebol, no trabalho e que o apelido era uma forma de intimidade, que o apelido aproxima as pessoas, que o apelido era uma forma de carinho com o outro, que muitas pessoas são mais conhecidas pelo apelido do que pelo prenome e nome. O Excelentíssimo Senhor Promotor arrematou o discurso: - O mundo não conhece Edson Arantes do Nascimento, mas em qualquer aldeia africana, os aficionados por futebol conhecem Pelé. Se alguém perguntar aqui, quem é Maria das Graças Meneghel, ficará sem resposta, mas se alguém perguntar quem é Xuxa, a resposta será imediata. Se alguém perguntar ao mais erudito deste auditório quem foi Manuel Francisco dos Santos, todos vão lhe olvidar, porém, se perguntar ao mais ignorante deste auditório quem foi Garrincha, ele dará a resposta de chofre. Por isto, Excelentíssimo Senhor Juiz Presidente deste Tribunal, Senhores do Conselho de Sentença e Senhores Advogados, o réu merece a pena máxima, porque sua mente é complexada e doentia e o torna potencialmente perigoso para o convívio social, o cárcere público é o seu lugar – o auditório ficou em polvorosa, foi necessário que o juiz intervisse para normalizá-lo. A defesa quase que não aparteou o promotor nem seus assistentes, salvo, quando um dos seus advogados assistentes, dirigiu palavras pejorativas ao réu: “energúmeno”, “besta-fera”, “primitivo”, “facínora”, etc., boa parte do auditório também não gostou da desqualificação do réu nem Giovanni Rossetti. A família da vitima não podia queixar-se do seu advogado de acusação pela intempérie verbal, todavia, o auditório seleto, de pessoas esclarecidas, queria argumentos consistentes, provas robustas, não apelação!... O MM Juiz Presidente do Tribunal, após algumas recomendações ao escrivão, permitiu que a defesa se manifestasse. Giovanni Rossetti iniciou curvando-se para o auditório, a recíproca foi de descrédito, mas alguns esporádicos “VV” de vitória foram dados ao advogado. Calmo, sereno, mas com certa malícia nos olhos, Giovanni Rossetti iniciou a defesa de “Cabeção”: - Excelentíssimo Senhor Juiz Presidente deste Tribunal, Excelentíssimo Senhor representante do Ministério Público, Senhores do Conselho de Sentença e Senhores advogados, bom-dia! – fez uma pausa... - Excelentíssimo Senhor Juiz Presidente deste Tribunal, Excelentíssimo Senhor representante do Ministério Público, Senhores do Conselho de Sentença e Senhores advogados, bom-dia! – fez uma pausa maior... - Excelentíssimo Senhor Juiz Presidente deste Tribunal, Excelentíssimo Senhor representante do Ministério Público, Senhores do Conselho de Sentença e Senhores advogados, bom-dia! – o juiz fez algumas recomendações, mas a defesa fez-se de ouvidos moucos... - Excelentíssimo Senhor Juiz Presidente deste Tribunal, Excelentíssimo Senhor representante do Ministério Público, Senhores do Conselho de Sentença e Senhores advogados, bom-dia! – o juiz não se controlou: - Dr. Giovanni Rossetti, o Senhor está sóbrio? Respeite este Tribunal! Nós não temos tempo pra ficar lhe ouvindo repetidas vezes: “Excelentíssimo Senhor Juiz Presidente deste Tribunal, Excelentíssimo Senhor representante do Ministério Público, Senhores do Conselho de Sentença e Senhores advogados, bom-dia!”, qual é sua intenção!? Se o Senhor veio aqui brincar, procure sua turma! – a bronca foi acompanhada com alguns apupos de apoio da plateia. Rossetti não perdeu a fleuma, deixou que os apupos parassem e continuou: - Senhores Jurados, todos aqui, presenciaram o descontrole emocional do Excelentíssimo Senhor Juiz Presidente deste Tribunal, para que sejamos justos, ele se descontrolou porque é humano e atitudes más incomodam, ele não é mau, é um jurisconsulto, um homem ilustrado, com discernimento aguçado, compreensivo, de bom senso – a plateia já não se mexia, silêncio absoluto, expectativa enorme -, agora, Senhores Jurados, imaginem um sujeito de escolaridade elementar, uma pessoa simples, vida sofrida, vaqueiro, trabalhador rural, o tempo todo ser chamado, pejorativamente de “Cabeção”, por um ex-colega de escola de vida abastada, que não sabia quanto custava 1Kg de feijão, 1Kg de arroz, 1 pacote de café, 1kg de carne, pois com 30 anos de idade, nunca trabalhou, nunca teve carteira de trabalho assinada – fez uma pausa e continuou: O ilustre Dr. Promotor, em sua retórica elitista (o promotor solicitou um aparte, mas o juiz negou), que graças a Deus nunca soube o que é fome. O nosso constituinte (faz-se necessário dizer: seu patrão que pagou os meus honorários), não tem onde cair vivo porque morto se cai em qualquer lugar. Se ele almoça bem meio-dia, à noite, merenda ou não come nada. – fez uma pausa para pigarrear, ou, recurso de retórica: - O nosso digníssimo representante do Ministério Público pintou um quadro poético em que alguns famosos são mais conhecidos pelos seus apelidos do que pelos nomes de batismos, porém, são realidades distantes deste réu, um inapropriado recurso retórico usado pelo Dr. Promotor para justificar o mal que a vitima fez ao meu constituinte, por muito tempo, todos nós conhecemos: “Xuxa”, “Pelé”, “Toquinho”, “Chacrinha”, o saudoso “Garrincha”, e tantos outros que são ou eram conhecidos pelos seus apelidos, porém, esses apelidos são suas verdadeiras identidades para sempre, inclusive, identidades laborais. – deu uma olhada no relógio para saber o tempo que lhe restava... - O apelido repetido, pejorativo, agressivo, dito em lugares inadequados, torna-se agressão física, moral, e psicológica, de danos mentais irreparáveis. A pessoa estigmatizada socialmente, como mecanismo de defesa, ele desenvolve as seguintes atitudes: se esconde com medo de ser agredida, reage com agressividade, então, suicida-se. – olhou o relógio mais uma vez, o tempo urge... - Senhores Jurados, o meu constituinte agiu em legítima defesa, porque a vítima o estava empurrando para o suicídio cada vez mais, as testemunhas foram unânimes em afirmar que José Alberto, o “Cabeção”, se isolava, não mais ia à igreja, à Praça da Matriz, ao campo de várzea, à feira-livre ou ao mercado. Escondia-se de todos e de tudo, a única coisa que ainda lhe movia viver era sua namorada e naquele dia fatídico a vítima deu-lhe o golpe final: “Cabeção, já pensou essa cabeçorra com par de chifres? Ah, ah, ah...“ Ele também não premeditou o crime, ele agiu por impulso, ódio acumulado, frustrações, desespero e irracionalidade. Por isto, Senhores Jurados, peço-lhes por amor a Deus, que antes de responderem os questionários de “sim” e “não”, reflitam sobre o sofrimento deste homem - apontou o réu -, que foi empurrado pelas circunstâncias fazer o que sua natureza sempre rejeitou e prova disto, é que em seu primeiro depoimento ao delegado, se desmanchou em lágrimas de arrependimento por ter tirado uma vida. Senhores Jurados, a Justiça não é cega, cego é o injusto!... Não houve tréplica, houve réplica, não mais com o mesmo entusiasmo, depois da fala da defesa. O Dr. Juiz entregou as cédulas aos Senhores Jurados, dadas as instruções de praxe, pouco mais de 1 hora, o Juiz volta ao plenário, todos ficaram de pé, o oficial de justiça recolhe as cédulas, o Juiz contabiliza os votos, pede silêncio ao plenário e dá o veredito: - Senhores, antes do veredito, eu quero lhes pedir desculpas pelo meu descontrole emocional na fala da defesa. Conheço Dr. Giovanni Rossetti faz algum tempo, porém, eu confesso-lhes que seu artifício me irritou, depois, todos nós compreendemos seu estratagema. Quero lhe pedir desculpa, em particular, pelo mal entendido, desejo que ele volte sempre a este Tribunal. Parabenizo, também, o Dr. Promotor pela brilhante atuação e estender os meus parabéns aos seus assistentes de acusação. Quero agradecer aos Senhores Jurados, pois de fato, são eles os verdadeiros juízes. – arrumou os papéis e anunciou o veredito: - O Conselho de Sentença por unanimidade absolveu o Sr. José Alberto Ávila Santana. Que o oficial de justiça lavre o termo de absolvição e o envie à autoridade responsável pelo sistema prisional de nossa cidade. – completou: - A Sessão está encerrada. Obrigado!

Autoria: Rilvan Batista de Santana
Licença: Creative Commons

Rilvan Santana
Enviado por Rilvan Santana em 01/01/2017
Alterado em 01/02/2023


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Imagem de cabeçalho: Sergiu Bacioiu/flickr