Textos


Luíza - R. Santana
Luíza
R. Santana
Nós tínhamos a idade da inocência. Os nossos olhos expressavam o que era proibido aos nossos corpos. Não nos tocávamos, exceto, quando sua mãe falhava no zelo. A “Escola Sagrado Coração de Jesus” era o nosso dia a dia. Lá estudávamos, lá aprendíamos o conhecimento dos livros, lá, eu e Luíza brincávamos de amor, lá, a professora Name, sua mãe, cuidava de nosso futuro.
Hoje, lembro-me a dedicação de Luíza nos estudos, não obstante sua mãe ser nossa professora, ela estudava com gosto, desenvolta em todas as matérias, com exceção da aritmética. Sua dificuldade em tabuada levava-me, a contragosto, usar a palmatória em suas mãozinhas nas sessões de sabatina de vez em quando, pois eu tinha mais facilidade nessa matéria mais do que nas outras. Certa feita, sua mãe deu-me meia dúzia de bolos para aprender usar a palmatória: “... é assim que se bate!”, Luíza chorou por dó e sentimento de culpa, eu chorei de ódio da professora Name.
Sua mãe relaxava o cuidado com Luíza em acontecimentos especiais: 7 de Setembro, competições esportivas, representações teatrais de Natal, da Semana Santa, eventos comunitários de arte e cultura, mas esperávamos ansiosos as festas juninas, professora Name curtia o forró, todos os anos, contratava um marcador para formar e desenvolver as quadrilhas juninas e, no dia de São João, a escola abria para comunidade.
A dança junina é freudiana, o instituto sexual fica à flor da pele, os cavalheiros dançam quase colados às damas, quanto mais desenvolto for o corpo, maior é o desempenho do par, o cavalheiro arrasta a dama pelo salão com leveza e requebro, o tempo da música é demorado, nenhum casal se destaca, todos os casais são contemplados pelo som gostoso do forró e do baião, os pés acelerados e de forma regular, dão o ritmo da dança.
Marcar a quadrilha exige experiência e conhecimento, o marcador é o maestro da dança, todos os atos estão sob seu comando, ele não usa a batuta, mas usa os “comandos” que regem os movimentos dos dançarinos com harmonia e graça.
Eu ficava em frente à Luíza na fila dos homens, ela, na fila das mulheres, esperávamos, somente, o primeiro comando pra começar e quando o marcador gritava “balancê”, o corpo começava balançar, em ritmo alternado, ora homem, ora mulher, quando ele gritava “en avant” todos caminhavam avante com os braços balançando e voltávamos aos nossos lugares quando ouvíamos o comando: “returner”.
No “tour”, eu abraçava Luíza na cintura enquanto isto, ela colocava o braço esquerdo no meu ombro e girávamos para direita. No ritmo da dança, os cavalheiros cumprimentavam as damas e as damas os cavalheiros. Na quadrilha junina, as evoluções são várias: primeiras marcas no centro, grande passeio, troca de damas, troca de cavalheiros, o túnel, “en avant tour”, o caminho da roça, caracol, desviar... Divertíamo-nos muito, quando o marcador gritava: “olha a cobra”, “é mentira”, aí os grupos se refaziam do susto.
Após formar grandes rodas, em galope, sempre no ritmo da dança, os cavalheiros e as damas despediam-se, encerrava-se a quadrilha, os músicos continuavam tocando e o espaço era liberado para os adultos dançarem, enquanto, eu e Luíza aproveitávamos o descuido de sua mãe, às escondidas, íamos “namorar”.
Luíza não gostava de fogos, tinha um medo mórbido de bombas, quando insistíamos, ela se aventurava soltar “chuvinhas”, traques, “cobrinhas”, ou seja, fogos que não ofereciam riscos explosivos. Eu não gostava nem destes fogos, uma “cobrinha” tinha invadido minha bota e me deixou com o pé queimado por algum tempo. No São João, gostávamos mesmo de dançar, comer canjica, bolo de tapioca, milho verde e, quando os adultos deixavam, tomávamos dois dedos de licor de jenipapo, de cacau, ou, nos empanturrávamos de doces.
Ah, bons tempos eram aqueles, tempos de inocência, acreditávamos em nossas juras de amor sem pejos, nós não éramos o dono do mundo, mas éramos filhos de Deus, o dono. Tudo era cor de rosa e o ceu de brigadeiro, a maldade passava distante da gente, a dor e o sofrimento não eram nossos aliados. Em casa, nossa preocupação maior, era realizar as tarefas escolares de Name, a vida valia a pena...
Não nos beijávamos, aliás, não conhecíamos o beijo com gosto de sexo dos adultos, conhecíamos, somente, o beijo como expressão de afeto dado na face, quando, eu e Luíza demos a nossa primeira “bitoca”, nos sentimos culpados, uma mistura de prazer e pecado ficaram em nossas mentes por algum tempo.
Eu amava Luíza, amava sua inocência, seu jeito meigo, sua voz delicada, seus cabelos cor de mel, e, amava sobremaneira suas mãos... Mãos cor de jambo, mãos delicadas, mãos de dedos compridos e unhas aparadas, cor de rosa, mãos inteligentes, mãos divinas, mãos de deusa.
A “Escola Sagrado Coração de Jesus” ficava num princípio de bairro, onde havia mais mato do que casa, com muitas árvores esparsas, no recreio, os mais velhos iam brincar futebol no campinho da escola, os pré-adolescentes iam brincar embaixo de árvores frondosas, eu e Luíza ficávamos entre os últimos, os últimos, pois ficávamos a sós, ali, embaixo de uma jaqueira ou um pé de jambo, trocávamos juras de amor eterno, então, brincávamos de médico, marido e mulher, ou, pais ardorosos:
- Amor, que é de Juninho?
- Foi jogar bola com os vizinhos!
- Mas... ele é pequeno, vai se machucar...
- Oxente querido, Juninho é um rapazinho... – ou, brincávamos de médico:
- Doutor... uma dorzinha no coração... – eu colocava o “estetoscópio” no peito...
- Mas... seu coração está batendo normal, senhora! – Luíza retrucava:
- Doutor, este aparelho está ruim, ouça o meu coração! – deitava a cabeça no seu peito...
- Senhora... o coração contou-me que seu mal é de amor!...
- Que coração abusado, doutor?... – arrependia-se:
- Coitado... ele deve ter razão... tem cura doutor?
- Sim!
- Prescreva o remédio já, doutor!
- Aqui, não!
- Onde, doutor?
- No hospital!
- Pois, leve esse coraçãozinho pra lá, doutor! – enlaçava Luíza e levava-a pra outro ponto mais escondido da jaqueira.
- E agora, doutor?...
- Deixe de pressa, senhora!...
Amor infinito, juras eternas, inocência sempre, maldade exorcizada, carinho sublime, momentos eternos, felicidade sem fim, eu e Luíza, Luíza e eu...

Autor: Rilvan Batista de Santana
Licença: Creative Commons
Rilvan Santana
Enviado por Rilvan Santana em 17/09/2016
Alterado em 17/09/2016


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Imagem de cabeçalho: Sergiu Bacioiu/flickr