A confissão de André R. Santana
A confissão de André
R. Santana
O escritor José Saramago foi feliz quando escreveu: “Filho é um ser que nos emprestaram para um curso intensivo de como amar alguém além de nós mesmos, de como mudar nossos piores defeitos para darmos os melhores exemplos e de aprendermos a ter coragem”. Amamos os filhos mais do que a nós mesmos, porém, como disse o escritor, o filho é um ser emprestado, quando menos se espera o filho é chamado por Deus ou o mundo o arrebata, sufocando corações, destruindo sonhos, deixando pais sozinhos e infelizes.
Faz muito tempo que os meus filhos se foram, de quando em vez, filhos e netos me telefonam, quase sempre, para sugarem o meu minguado bolso de aposentado. Nunca me telefonaram preocupados com a minha saúde ou a minha solidão. Depois que a minha mulher foi para eternidade, socorro-me da fidelidade e da amizade dos amigos e de Hanna. Quem é Hanna? Hanna é uma fêmea linda, de olhos cor de mel, boca carnuda, pequena, amorenada, carinhosa, nela, eu deposito as minhas queixas e as minhas alegrias. Quem é Hanna? Hanna é a minha cadela de raça Bassê!... Nós temos uma relação onomatopéica, ela entende a minha fala e eu entendo o seu latido, às vezes, “conversarmos” horas seguidas sobre os mais diversos assuntos.
Não pense o desavisado leitor que estou ficando pinel, amalucado... Não, não estou ficando doido, pois não é à toa, que o cachorro é considerado o melhor amigo do homem e existe uma relação tão forte entre ambos que é melhor um cachorro amigo do que um amigo cachorro, porque o cachorro amigo morre pelo dono, o amigo cachorro o apunhala pelas costas na primeira oportunidade.
Foi fácil descobrir o que Hanna pensa, ela é inteligente e excelente interlocutora, a minha fala não é um monólogo, é um diálogo, ou melhor, é uma relação binária: quando ela concorda, calada, fixa o olhinho pra mim e faz assentimento com a cabeça; quando a minha fala lhe contraria, ela dá um latido para reprovação parcial e dois latidos para reprovação total.
Não me queixo da velhice. A velhice é a soma de todas as experiências, é a idade da razão, do discernimento, também, é a idade da emoção, da tolerância, do afeto, da amizade duradoura e amor perene, contudo, a velhice é a idade do ocaso, da consciência do fim, do crepúsculo e a idade da decrepitude física. Ledo engano daquele que recorre aos artifícios médicos-cirúrgicos e às panacéias medicamentosas para não envelhecer.
As mulheres, mais sensíveis ao belo, são as vítimas desses construtores de estética artificial que perambulam por aí, são comuns erros nocivos desses cirurgiões plásticos, às vezes, deixando as mulheres com marcas profundas no corpo e na alma. Quanta socialite de rosto puxado e repuxado, nós conhecemos? Não dar pra contar... Se um dia, a ciência usar a célula-tronco para renovação dos órgãos humanos, certamente, elas retardarão o envelhecimento, todavia, jamais vencerão a morte. Se o espírito é eterno, a matéria é corruptível e finita.
Seria ideal que o homem não envelhecesse ou nascesse velho e morresse novo (natureza às avessas), porque a velhice é feia, é dolorida, é anti-social e indigna. A velhice e a morte são sinais da pequenez humana. A sublimação da velhice é fugir da realidade, os artifícios estéticos só servem para racionalizar a impotência humana.
O silêncio da solidão me incomoda... Não posso me queixar dos meus vizinhos, não obstante cada um cuidar de si, eu sou contemplado diuturnamente por gestos de amizade, mas a realidade impõe que cada um cuide de sua casa, de sua família, não posso exigir mais consideração e préstimos de outrem do que da família que eu construí e a vida tirou de mim.
Alguns vizinhos são indiferentes, não cheiro nem fedo, de quando em vez, eles me cumprimentam: “Bom dia, mestre André!”, “Boa tarde, mestre André!”, “Boa noite, mestre André!”... Desejar mais é impossível, são pessoas que têm um rei na barriga, não conhecem o valor da amizade e da solidariedade, vivem estressadas de trabalho, o saco delas nunca enche, nasceram soberbas e morrem soberbas, elas professam Deus socialmente, o dinheiro e a riqueza são os seus objetivos, algumas vendem a alma ao Diabo se for preciso pra enriquecer, são pobres de espírito que se encaixam como uma luva na parábola de Jesus Cristo do homem rico que construiu muitos celeiros para sua produção (Lucas 12:16-21), são pessoas dignas de pena!...
O pensamento humano ainda não teve resposta para os questionamentos: “Quem sou eu?”, “De onde vim?” e “Para onde vou?”. Conhecemos a explosão da vida, mas não conhecemos os seus mistérios. Quem não se queda no desabrochar de uma flor? Existe imagem mais bonita do que o nascimento de um ser humano ou outro animal? Não existe. A vida é movimento, a vida é inspiração de Deus, a vida é a explosão do belo, o homem não compreende por que razão o Criador deixou a velhice, a dor, o sofrimento e a morte para destruí-lo. Se as promessas de Jesus Cristo não forem verdadeiras, é melhor ser pedra do que ser homem.
Uma das rusgas com a minha falecida mulher, era sobre o abate de suas “galinhas-caipiras” que ela insistia comprar na feira-livre nos finais de semana. Na segunda-feira, eu saía de casa ainda cedo para não ser testemunha de sua maldade: ela colocava água no fogo pra ferver, amolava a faca na pedra, prendia a galinha nos pés e cortava o seu pescoço, dentro de dois quartos de hora, os pedaços de galinha tratada enchiam a panela.
Isso me lembrava o meu pai na fazenda abatendo os porcos e o choro sofrido daqueles pobres animais diante da morte, cenário lúgubre que jamais esqueci. Por isto, o homem é considerado pela sua maldade o pior dos animais. Não concordo com Rousseau que diz que o homem nasce naturalmente bom, o homem é naturalmente mau e a sociedade faz o resto. O bicho não tem consciência da morte, mas do instinto de sobrevivência e preservação, o bicho mata para não morrer ou para sobreviver. O homem é o único animal que tem consciência da morte.
Não tenho mais pernas para andar aqui e acolá, sou sedentário por conveniência e não por gosto, mas não reclamo, o sedentarismo contribuiu para eu adquiri novos hábitos, hoje, leio menos, escrevo mais e reflito bastante, a reflexão é um estado mental que faz bem a saúde. Aprender pensar não é fácil, é necessário disciplina e método, porém, pensar não é apanágio só das grandes mentes, dos filósofos, o homem é um ser pensante, aprender pensar é uma necessidade.
Eu descobri ao longo dos anos que a finalidade da vida é ser feliz. Mas, a felicidade não significa ter muito dinheiro, muitos bens, viajar pelo mundo, curtir a noite na boemia, conquistar todas as mulheres, possuir grandes dotes intelectuais, morar em mansão, usar roupas de grife, possuir carros sofisticados, ter poder político, ser destaque social, enfim, usar e abusar dos prazeres que a vida oferece... Não! Não! Os momentos de felicidade encontram-se na capacidade de compreensão do homem diante da vida e sua capacidade de encontrar a paz.
Aqui no silêncio da solidão, penso diuturnamente, se Deus deixou o mal, o sofrimento, a doença, os sinistros da natureza, as hecatombes mundiais ou tudo decorre do mundo das possibilidades? O que é o mundo das possibilidades? Eu penso que é mais ou menos assim: o mal e o bem existem, naturalmente, na mesma proporção, portanto, as possibilidades de um ou outro ocorrer é a mesma, às vezes, independe da vontade do homem, do seu livre arbítrio, faz-se necessário esclarecer que não estou, aqui, fazendo apologia determinista, destino... Não! Eu quero dizer que vivemos num mundo de possibilidades naturais, humanas...
Não é prudente, nem fácil materializar as coisas da mente, as ideias nem sempre são práticas, mas por desencargo de consciência e se a sorte me favorece e se o leitor for até o final desta minha confissão, ele não fique com tantas dúvidas em sua leitura quanto eu a tenho dificuldade de lhe explicar, eis alguns exemplos:
- Todos os seres vivos têm células cancerígenas, portanto, todos os seres vivos têm, potencialmente, a possibilidade de desenvolver um câncer.
- As placas tectônicas da Terra fazem necessárias acomodações, portanto, os terremotos, os maremotos, os tsunamis e outros fenômenos naturais sempre terão a possibilidade de gerar grandes sinistros que independem da agressão do homem à natureza.
- Num ambiente de violência, sempre irá existir a possibilidade de alguém morrer de uma bala perdida.
- Numa rodovia, sempre haverá a possibilidade de alguém morrer de acidente de carro, a imprudência ajuda a racionalização.
- Qualquer pessoa nasce com a possibilidade de dirigir um país se suas ações políticas têm essa finalidade.
Com base nesse pensamento, o mal e o bem sempre seriam justificáveis, sem recorrer às teorias deterministas quaisquer que fossem sua natureza e não aceitar jamais a ideia de que Deus pune o homem com o mal se Ele lhe deu o livre arbítrio e o conhecimento da ciência.
Hoje, não lamento mais o abandono dos meus filhos e a morte da minha mulher diante das circunstâncias, eu aprendi ler o mundo, nós somos as nossas circunstâncias, podemos mudá-las ou usá-las de melhor forma. Se as minhas confissões não servirem para suavizar a solidão e a dor de alguém, colocá-las pra fora, suavizaram a minha alma e o meu coração.
Autor: Rilvan Batista de Santana
Licença: Creative commons
Itabuna, 17 de julho de 2011.