Textos


Tribunal do crime 

R. Santana


     Ricardo Shoe não parava de andar sempre no mesmo trajeto, parece que havia traçado uma linha reta na sala, ia e voltava pelo mesmo caminho. O mais sabido e inteligente de todos, antes de seus pais serem vítimas de latrocínio, havia estudado Direito, largou tudo e vingou-se dos criminosos com requintes de perversidade, inclusive, um de menoridade, ele o castrou antes de assassiná-lo e colocou os testículos em sua boca porque esse menor havia seviciado sua mãe antes de ferir-lhe mortalmente. Ele não passou muito tempo detido, a polícia fez o inquérito, o promotor fez a denúncia, mas a justiça rejeitou o processo por falta de provas, na verdade, foi um jeitinho que as autoridades encontraram para concordarem legalmente com a vingança de Ricardo Shoe.
     Porém, ele não se satisfez, somente, com a vingança dos pais, tomou pra si a defesa dos indefensáveis sociais, portanto, quando a justiça falhava, ele fazia justiça por conta e risco, com ajuda de alguns cúmplices na calada da noite em um sítio de herança.
     Geralmente, seus companheiros eram pessoas marcadas por injustiça e desejo de vingança. A inteligência maquiavélica de Shoe fazia a diferença dos demais. Admirado por muitos, odiado por alguns, se equilibrava com certa desenvoltura entre a legalidade e o que não é legal, mas que é justo, assim, durante o dia desempenhava seu papel de administrador de empresa, à noite, um “zorro” dos novos tempos quando a situação exigia.
     Naquele dia, no julgamento de Zarolho, o cenário era o mesmo desde que começou fazer justiça por conta própria: sete jurados, quatro testemunhas, dois praças, dois advogados (defesa e acusação), um promotor de justiça e um juiz, todos encapuzados à Ku Klux Klan e confortados em cadeiras de assento e encosto macios, mesa de trabalho, e, a imagem da deusa Têmis com a balança suspensa na mão esquerda e a espada embainhada na mão direita. Todos estavam tão compenetrados do seu papel como se fossem verdadeiros agentes da justiça e operadores do Direito.
     Quando Ricardo Shoe assumiu a postura de magistrado e encaminhou-se pra mesa, todos ficaram em pé em respeito ao juiz, Zarolho esboçou pequena resistência, mas foi levantado abruptamente pelos soldados trogloditas, quando o juiz tomou assento, os demais o acompanharam e a sessão começou com o sorteio dos jurados que no “Tribunal do crime” são escolhidos a priori e não entre 40 representantes da sociedade, leu-se o relatório do processo, o juiz fez uma explanação com justificativa da criação e existência do “Tribunal do crime”:
     - Senhores, a nossa justiça institucional é morosa e corrupta. Há juízes probos, mas alguns são venais, outros, usam as falhas das leis apara agradar aos amigos, ou, aos poderosos. Só fica preso o sujeito que não tem recursos financeiros para constituir bons advogados. As instâncias são várias e os recursos são ilimitados em quanto houver jurisprudência... O crime é generalizado, não existe mais “modus operandi” de bandido, os criminosos são iguais em barbárie. O crime está organizado dentro dos presídios e fora... A droga é o mal do século e movimenta mais dinheiro do que alguns países pequenos. O traficante não tem limite de perversidade nem escrúpulos morais, no mundo do crime a lei é a eliminação sumária sem julgamento do infrator sob o manto do silêncio e do sigilo. Nós, aqui, somos justiceiros, isto é, nós amamos a justiça, somos instrumentos de Deus para que a justiça se cumpra neste tribunal. Não somos justiceiros no sentido pejorativo, não somos linchadores, temos o nosso código de honra e o consenso é o nosso norte... – fez uma pausa prolongada e continuou:
     - A Lei de Talião é a fonte de nossa inspiração: "Se uma pessoa arrombar uma casa alheia, ele deverá ser condenado à morte e ser enterrado na parte da frente do local do arrombamento", "se alguém acusa o outro, mas não pode prová-lo, o acusador será morto", “\Olho por olho, dente por dente”... Claro que é uma lei exagerada para o Século XXI, todavia, alguns princípios são aproveitáveis e devem ser seguidos. Se a impunidade em nosso país não fosse institucionalizada, o crime não acabaria, é próprio da natureza humana, mas seria de caráter suportável e justificável, não por motivo fútil e desalmado – fez mais uma pausa e completou:
     - Repetindo César: “Alea jacta est”, os dados estão lançados, os senhores do júri, os excelentíssimos advogados e o excelentíssimo promotor têm em mãos a responsabilidade de inocentar ou culpar o réu! – a sessão de fato começou.
     As testemunhas foram ouvidas, ninguém quis eufemizar o crime, nem as testemunhas da defesa que, apenas, ressalvaram a conduta trabalhadora do réu, que não tinha vícios de cachaça e fumo: Zarolho havia estuprado e matado por asfixia sua enteada de 9 anos de idade. Algumas testemunhas acrescentaram que desde os 6 anos de idade da menina que ele a abusava. Sua mulher, a mãe da criança, o pegou em flagrante, ele foi preso e fugiu da cadeia. A polícia relaxou na busca, a justiça esqueceu o caso, porque o indivíduo era primário e não oferecia risco, seis meses depois, ele voltou e se vingou da prisão na menina e a mãe só escapou por encontrar-se no seu emprego de doméstica. Muitas o definiram como o “monstro” da cidade “X”.
     O advogado de acusação e o promotor foram contundentes na acusação, o réu não merecia indulgência, perdão, um monstro que tinha praticado crime contra dignidade sexual - Lei nº. 12015/09 -, da criança Carol, com agravante previsto no artigo nº. 225 “Caput” CP, com as qualificadoras do artigo nº. 213 && 1º. e 2º. , CP... O “energúmeno” a abusava desde os 6 anos de idade sob tortura psicológica e ameaças físicas contra sua genitora.      A criança inocente deixava-se acariciar e bolinar em suas partes íntimas pelo indivíduo. Flagrado pela genitora da menina e preso, mostrou-se velhaco e perigoso, premeditou o crime, fugiu da cadeia, barbarizou a vítima como vingança e homiziou-se em casa dos seus parentes no interior de Pernambuco, foi preso graças a clamor público e ajuda dos meios de comunicação que divulgou sua foto para todos os rincões do país, etc. e etc.
     O advogado de defesa exerceu seu papel, foi mais ameno, explorou o lado emocional dos juízes do povo. Alegou que o seu constituinte não passava de um pobre diabo sem eira nem beira. Analfabeto, tinha como fonte de sobrevivência: catar latinhas de cerveja e refrigerantes, papelão e metais de pouco valor nos lixões. Desde cedo, enfrentou as durezas do dia a dia e a incompreensão da sociedade. Nascido na pobreza quase absoluta, sua primeira caneta foi uma enxada e quando calçou um sapato já tinha 15 anos de vida. Não se podia culpar um homem que não teve oportunidade de se educar, que não possuía consciência moral, se alguém era culpado, esse alguém era o estado brasileiro e a mãe da menina que havia amancebado com um tipo assim...
     Houve réplicas e tréplicas. A acusação e o promotor argumentaram que pobreza não fabrica assassino, que era obrigado concordar com Cesare Lombroso: existe assassino nato...
     Os jurados o consideraram culpado. Ricardo Shoe não quis ficar com maioria simples, todos 7 jurados votaram pela condenação do réu. Zarolho foi levado pra algum lugar e dois dias depois o corpo do estuprador foi encontrado no lixão da cidade.
     Conclusão:
     Não se faz apologia de crime, mas se as instituições do estado são corruptíveis, não se promove a justiça como bem comum, então, o crime organizado assume o seu lugar!...

 


Autor: Rilvan Batista de Santana
Licença: Creative Commons

Membro da Academia de Letras de Itabuna-ALITA

Imagem: Google

Rilvan Santana
Enviado por Rilvan Santana em 28/02/2014
Alterado em 23/01/2024


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