João “Zabelinha” R. Santana
João “Zabelinha”
R. Santana
Quando conheci meu avô João “Zabelinha”, eu deveria ter 6 ou 7 anos de idade, ele já era um ancião, mas afora os sinais de cegueira que começavam se manifestar, era lúcido e tinha boa compleição física e boa disposição de espírito. João “Zabelinha” era pequeno, rosto arredondado, cabelo liso, moreno claro e uns olhinhos azuis que davam gosto, era um homem simpático apesar da idade. Teve uma prole enorme com a mesma mulher, comum naquela época nos recônditos nordestinos, as famílias eram de muitos membros... Marido dedicado, pai de família estremado e avô afetivo.
Não obstante as intempéries da natureza, sempre a seca assolando a lavoura, João “Zabelinha” criou e educou 18 filhos como comerciante de rancharia e agricultor de fumo. Embora sua família fosse numerosa, sua mesa era farta, desde cedo ensinou aos filhos que o trabalho dignifica o homem e é o antídoto da miséria, nunca deixou que o ócio e o vício tomassem conta de sua casa. Depois da escola, as filhas iam ajudar a mãe na labuta da casa e os filhos iam pra malhada lhe ajudar na lavoura de fumo ou cuidar da pequena criação.
João “Zabelinha” não era homem culto, mas era cheio de sabedoria: “Quem não bate em seu filho para não lhe vê chorar ao invés de amor lhe terá ódio”, “Pé de galinha não mata pinto”, “Quem oferece flores, fica com perfume nas mãos”, “Cavalo de corrida morre na pista”, “O amor e o ódio têm a mesma morada”, “Velho é molambo”, “Quem não se ajeita por si se enjeita”, “Brincadeira quando não dar prejuízo, rasga a camisa” e etc. Nunca usou o reio ou a palmatória na educação dos filhos, comum naquela época, mas enchia os filhos de conselhos e exemplos de vida, seu olhar severo, era a admoestação necessária para que o infrator se enchesse de temor e não mais transgredisse.
Se um dos seus filhos ganhasse um presente de alguém ou chegasse com objeto estranho, ele lhe exigia a procedência e o motivo e qualquer suspeição, o presente ou o objeto estranho, seria devolvido e o filho repreendido. Para meu avô, “quem é desonesto no pouco, é desonesto no muito”, o ser é mais importante do que o ter, quando um dos filhos tergiversava na explicação, ele lembrava-lhe que “mentira tem pernas curtas” e o homem tem que ser fiel à verdade mesmo com prejuízo. A ética e a moral eram tão importantes para o homem quanto o alimento e a água. Ele abominava o princípio de um dos personagens de Machado de Assis que justificava o roubo: “Suje-se gordo!” João “Zabelinha” achava que roubar muito não deixa o sujeito menos ladrão, quem é ladrão no tostão é ladrão no milhão.
O meu avô não era religioso, sua casa não possuía oratório, nicho com imagens de santo ou capela. Não era supersticioso, não acreditava em mandinga, em candomblé, não era espírita nem agnóstico, porém, seguia ao pé da letra os dois mandamentos de Jesus Cristo: “Amar a Deus sobre todas as coisas e amar ao próximo como a si mesmo”. No Coqueiro, lugarejo onde morava, ele servia aos vizinhos e aos conhecidos sem moeda de troca. Não era egoísta, mas preferia tomar café amargo pra não abusar o vizinho em dois dedais de açúcar. Ele achava mais prudente para preservar uma longa amizade, servir do que ser servido.
Era um homem desprovido de maldade, sem ambição, desconhecia os prazeres do mundo. Nunca adulterou, casou-se com a primeira namorada e viveram um amor infinito por mais de 60 anos, separados pela morte. Sua ambição consistia criar os filhos, vê-los crescer com dignidade e honradez. Não deixou bens materiais, recursos financeiros, mas legou para filhos e netos lições de vida que o tempo não apaga.
João “Zabelinha” não bebia, não jogava jogo de azar, não raparigava, não era homem de festa, não era notívago, mas era homem de boa prosa, bem relacionado e admirado. Porém, era fumante inveterado... Não fumava cigarro “Continental”, nem “Astória”, nem “Hollywood”, nem “Belmont” ou charutos cubanos, marcas que dominavam o mercado daquela época. Também, não fumava cachimbo, mas fumava sim, fumo picadinho enrolado em palha curtida de milho ou enrolado em papel “Itacolomy”.
O meu avô tinha seu ritual pra pitar um cigarro: passava o gume da faca na palha seca de milho, retirava de uma lata retangular o fumo já picadinho, enchia a palha de fumo, enrolava-a com a ponta dos dedos até ela atingir a forma de um cigarro comum, levava-o aos lábios, acendia o cigarro com fósforo ou isqueiro, dava umas duas baforadas, aí, ele começava aspirar com prazer...
Eu já gostava de sentar no alpendre da casa do meu avô nos dias de feira livre. Acho que por influência religiosa, naquela época, a feira livre de Lagarto era nos dias de Segunda-feira - o Domingo é o dia de Nosso Senhor Jesus Cristo – era um dia de festa... Descia o pessoal do Coqueiro, do Jenipapo, de Telha, de Santo Antônio e outros distritos lagartenses, todos passavam pela porta de João “Zabelinha” para feira livre, a pé, a cavalo, montado em jegue ou em cima de um carro- de - boi. Todos se esmeravam na roupa limpa e no calçado ou sandálias à Lampião. No inverno, os homens arregaçavam as pernas das calças para não se sujarem na estrada de chão e as mulheres faziam a mesma coisa com as saias.
Porém, nenhum nativo de lá esquece o canto do carro – de – boi, mesmo que passe o resto de sua vida em alguma metrópole do Sul ou do Sudeste do país. È um meio de transporte primitivo, diferente da carroça que é puxada por um cavalo, estrutura de madeira com pneus e câmeras; o carro– de – boi é puxado por vários bois, o carro é feito de madeira apropriada com enormes rodas de madeira e revestidas de um aro de aço e fixadas, também, num eixo de madeira. Mas, o que mais chama a atenção desses carros–de-boi, é o seu canto que sai da alma do eixo, às vezes, dolorido, tão sofrido quanto o carreiro, doutras vezes, é alegre e sonoro ao ouvido do solitário viandante.
Não era sempre, mas de caju em caju, meu avô pegava um dos seus netos que lhe servia de guia e percorria sítios e malhadas boa parte do dia por vários dias da semana. Não íamos muito longe, ele gostava de visitar sua concunhada Amália, João de Juvêncio, “Vina”, D. Candinha, Deja e outros que o tempo e a memória cuidaram de esquecer.
Percorríamos as estradas marginadas de macambira, aqui e acolá, ele parava para alguns dedos de prosa. Os sítios e as malhadas não passavam de 2 hectares. Atrás da casa grande, ficavam as mangueiras, os cajueiros, as laranjeiras, onde os assanhaços, as rolinhas e os ben-ti-vis faziam ninhos e mais atrás ficava a malhada de fumo, de mandioca, da batata doce, de milho, de inhame e o terreno de vez em quando era renovado com o plantio de feijão. Numa das extremidades do terreno, ficava o armazém de fumo ou a casa de farinha.
Eu só não gostava de passar no sítio de “Vina”, é que uns 20 metros antes da casa grande, ela construiu uma capela que ficava aberta para que alguém se aproximasse e orasse ajoelhado em bancos toscos, e, em frente, um nicho cheio de velas acesas com as imagens de Jesus Cristo e Nossa Senhora.
Todavia, no sítio de João de Juvêncio e Amália, seus parentes, era onde nós ficávamos à vontade, os sitiantes derramavam finuras pra meu avô. Eles não se cansavam de ouvir os ditos e provérbios de sabedoria de Benjamin Franklin, o Bom Homem Ricardo.
João Batista de Santana, João ”Zabelinha”, certamente, foi o nosso orgulho de menino, o nosso herói eterno, o nosso sábio.
Autor: Rilvan Batista de Santana
Itabuna, 10.07.2013