O fantasma de Nancy R. Santana
O fantasma de Nancy
R. Santana
O Mitsubishi deslizava suave e gracioso no asfalto molhado na BR 101, distante 40 Km de Aracaju, naquele domingo de maio do ano de 2006, às 11h:15min quando Dr. Alfrink Schmidt Andreotti desperta do cochilo e puxa conversa com Zé Maria, seu amigo, seu motorista, seu segurança, seu secretário particular, enfim, uma espécie de faz de tudo da família Andreotti há mais de 30 anos. Quando Zé Maria começou trabalhar com o advogado Alfrink, seus filhos Paulo e Paola eram meninos, hoje, são especialistas em medicina ginecológica e medicina ortomolecular, prestigiados e requisitados em todo país.
-Zé, eu estou preocupado com o filho de Paola!
-Carlos ou Neto?
-Neto!
-Ele não passou no vestibular!?
-Passou. Agora, ele deu pra beber e fumar...
-É coisa da idade doutor, influência de colegas... – o velho interrompeu Zé Maria:
-Não se pode culpar colega A ou colega B, Zé, a culpa é de Paola que lhe faz muito gosto!
-É compreensível. Aliás, Alfrink Neto nasceu privilegiado: herdou a inteligência do pai e a beleza da mãe. Essa fase de “aborrecente” passará!
- Deus lhe ouça, amo aquele moleque!
- Eu sei...
A velocidade do Mitsubishi ia um pouco mais de 100 km/h, o pouco movimento na rodovia naquela hora e a vontade de voltar pra casa permitiram que Zé Maria pisasse um pouco mais no acelerador, porém, surgiu de repente, um carro na contramão que vinha em zigue-zague, Zé Maria ainda puxou seu automóvel pra direita, na faixa do acostamento, mas não houve tempo de evitar o acidente, o carro desconhecido saiu rasgando a lateral do seu carro e foi a causa de várias capotagens do Mitsubishi, empurrando-o para o despenhadeiro.
A Polícia Rodoviária Federal agiu de pronto, uma ambulância do SAMU foi acionada, o motorista do carro que provocou o sinistro teve, apenas, pequenas escoriações, mas foi indiciado como crime de dolo pela vontade consciente de cometer o acidente, visto que não se aguentava nas pernas de bêbado e com a habilitação vencida. O motorista Zé Maria e o advogado Alfrink Andreotti foram levados, às pressas, para o Hospital Regional Governador João Alves Filho de Sergipe.
Nancy Lavigne Andreotti, esposa de Alfrink, nasceu em berço rico, seu pai era um dos usineiros mais conhecidos do estado e do país, deixou-lhe uma grande fortuna, antes do velho morrer e unir-se ao advogado, ela ficou uns quatro anos na Inglaterra (percorreu a maioria dos países da Europa), especializando-se em ginecologia e fez residência médica num conhecido hospital-escola de São Paulo, durante três anos.
Embora fosse uma mulher culta, de grande saber científico, depois que se aposentou da medicina, mergulhou na vida mística com beatice e paixão. Católica de nascimento, ultimamente, perseverava a fé católica, mas simpatizava o espiritismo. Dividia o seu tempo nas missas e sessões espíritas.
Quando alguém lhe questionava a incoerência entre a doutrina cristã e a doutrina kardecista, ela usava o princípio de que “Fé inabalável só é a que pode encarar frente a frente à razão, em todas as épocas da Humanidade”, que os Evangelhos haviam sido refletidos segundo a doutrina espírita de Kardec, que Jesus Cristo deu poder aos discípulos de cura das enfermidades e a expulsão dos espíritos imundos (Mateus 10:1), ora, a reencarnação segundo a exegese de Nancy, poderia ser a ressurreição apregoada por Jesus Cristo no Juízo Final.
Mas o que mais assustava Alfrink nos últimos tempos, é que sua esposa passou ter no dia a dia um comportamento antissocial, quase misantropo, não mais frequentava os amigos nem se deixava frequentar, seu único prazer era a religião católica e as ideias espíritas. Ia à igreja católica pela manhã, à noite, a sessão espírita. Os filhos e os netos deixaram de vê-la com frequencia. A família, pouco a pouco, não mais se reunia aos domingos e feriados como antes, na mansão, nessas ocasiões, enquanto o adulto comia e bebia a gosto, a molecada se divertia no playground.
A casa ficou sombria...
Aquele domingo de maio não foi diferente na rotina de Nancy: pela manhã, cedo, ela foi à missa, quando voltou pra casa, Alfrink havia ido visitar um amigo enfermo em Lagarto com a promessa de lá não pernoitar; á noite, ela foi à missa das 19 horas, depois do “Fantástico” foi dormir e acordou com o tilintar do telefone:
- Alô, é doutora Nancy?
- Sim!
- Aqui, é do HUSE!
- Hospital!?
- Hospital!
- Mas, já passa da zero hora!!! – irritada.
- Desculpe-me doutora, mas seu marido... – a funcionária foi interrompida.
- Meu marido!? Houve o quê!?
- Houve um acidente...
- Ele está bem? – a funcionária tergiversou:
- Bem... eu não sei... os médicos querem lhe ver...
O acidente foi fatal, Alfrink e Zé Maria foram socorridos ainda com vida, mas não resistiram aos ferimentos. Foi comoção geral, o advogado era muito conhecido, muito querido, tanto na capital como no interior do estado. Nancy, os filhos e os netos se desmancharam em lágrimas e lamentações. As convicções religiosas de Nancy não lhe deram suporte emocional nem conforto espiritual, talvez, por ter dividido a fé entre sua prática e suas convicções, ela foi quem mais sofreu com a perda de Alfrink, sofreu mais que os filhos e os netos.
Zé Maria não foi tão pranteado quanto o patrão, mas foi muito lastimado pelos filhos e netos de Nancy, principalmente, Carlos e Alfrink Neto. Zé Maria acobertava e minimizava as estripulias dos adolescentes. Como não tinha filhos nem parentes próximos, fez dos filhos e dos netos dos seus patrões, seus filhos e netos. Negro curtido, amigueiro, bem apessoado, afável, morreu sem aparentar que já era sexagenário e fazia algum tempo.
Dois anos depois do desenlace do marido, Nancy se tornou mais esquisita e a mansão mais sombria. Cedo despachava os empregados para suas casas e ficava sozinha com seus cachorros e seus gatos num mundo de casa. Deixou de frequentar a igreja católica e tornou-se mais presente na casa espírita Arapary. Não perdia uma sessão, pois não lhe fugia a esperança de reencontrar o marido não em carne e osso, mas em espírito, se não conseguisse vê-lo pelo menos lhe falar, dois anos depois, naquela noite do mês de maio, às 24:00 horas, eis que ele voltou!...
Os aposentos de Nancy estavam iluminados pela luz de velas. O vento soprava com força na copa das árvores do jardim, os animais da mansão miavam e latiam com choro, as portas rangiam os ferrolhos, o relógio de pêndulo batia 12 badaladas com força, a coruja distante rasgava a mortalha, o calor de verão invernou-se, Nancy ajoelhada no canto orava, quando Alfrink com voz soturna lhe apareceu:
- Não mais lhe deixarei querida!
- Eu também, meu amor!
Nancy voltou a sorrir, tornou-se benemérita do centro espírita Arapary, doa-lhe polpudas contribuições. Ela não deixou de tudo suas esquisitices, sua casa é frequentada, somente, pelos netos e filhos, mesmo assim, esporadicamente. Os empregados têm que sair antes que o sol não dê mais sinal de vida. Os seus aposentos fedem a vela queimada e têm aura de mistério. Os funcionários mais devotos afirmam por todos os santos conhecidos e desconhecidos que já viram e ouviram as pantomimas de Alfrink Schmidt Andreotti, ressalvam, entretanto, que nunca viram nem fumaça do negro Zé Maria.
Hoje, quando um forasteiro passa pelo passeio da lúgubre mansão e pergunta a alguém da cidade:
- É ali que mora o fantasma de Nancy?
-Sim. Ali mora o fantasma de Nancy!...
Autor: Rilvan Batista de Santana
Itabuna, 29.06.2013