Otelo de Akira
Otelo de Akira
R. Santana
Na minha rua, eu sou conhecido como “Otelo de Akira” ou “Vovô de Akira”, eu gosto do epíteto, Akira não é minha neta, mas é como se fosse minha neta, aliás, gosto mais dela do que as minhas netas de sangue, porque os netos de sangue não me dão nenhuma atenção, tive o desprazer de passar alguns dias na casa dos meus netos, eles não desperdiçavam palavras comigo, sempre tinham alguma coisa importante pra fazer do que conversar com velho, quando muito, “tchau vô”, ou, um pálido beijinho nas bochechas, na saída ou na chegada, e, os pais dos netos não deixavam por menos.
Sozinho num apartamento enorme, eu passava o dia entediado antes de conhecê-la. Distraia-me com a televisão e a leitura, às vezes, ambas me aborreciam e eu corria para jogar conversa fora com outros velhos no jardim, distante poucas quadras da minha residência, porém, o queixume de doença e o apego ao passado dos meus companheiros me irritavam, eles não sabiam aceitar o ocaso da vida e a irreversibilidade do tempo, “se correr o bicho pega e se ficar o bicho come”, logo, é necessário que se sublime o pouco que resta de vida e entender que a morte é o bem maior do homem. A morte encerra todos os males físicos, depois da morte é com o Criador...
Akira foi abandonada na soleira da minha porta, ainda bebê, enrolada de panos e dentro de uma caixa de papelão, eu acho que alguém quis me pregar uma peça ou quis preencher a minha solidão, balbuciei alguns impropérios para o malfeitor, mas uma voz interior gritou lá de dentro: “fica!...”
Hoje, Akira é a alegria do lar. Nós passamos parte do tempo passeando sem compromisso pelas ruas do bairro e a outra parte, nós discutimos a relação do homem com Deus e o significado da vida e da morte. Se acreditasse na metempsicose de Pitágoras, diria que Akira antes de se reencarnar em yorkshire, teve experiência de sabedoria e ciência, é uma cachorra muito inteligente e percepção aguçada.
Aprendi ler nos seus olhos e no seu latido tudo que me quer dizer. Claro, que não digo para os vizinhos que converso diuturnamente com a minha yorkshire, senão, iria ser estigmatizado de doido, lunático, alienado, maluco, mas a verdade é que conversamos e ela me tem ensinado muitas coisas. A sua mente transmite mensagens telepáticas, mesmo que não dê um latido. Capto tudo que Akira pensa com a mesma facilidade que conversasse com alguém.
Abre parêntesis:
Caro leitor, se o céu não conspirar contra mim, mas me conceda o favor de colocar tudo que penso no papel e a leitura não lhe for enfadonha e cada pensamento meu e de Akira sejam mitigados, espero que no final da leitura, pelo menos, tu me concedas o benefício de Voltaire: “Posso não concordar com uma só palavra sua, mas defenderei até a morte o seu direito de dizê-la."
Fecha Parêntesis.
Naquela manhã acordei mal humorado, quase não havia pregado os olhos, um amigo de infância havia morrido corroído por um câncer. Nunca o vi se queixar, enfrentou a doença com a resignação de Irmã Dulce e a força de Sansão, nós, os seus poucos companheiros, é que não queríamos entender o seu sofrimento, pois Matheus foi um filho exemplar, um pai extremado, um esposo devotado, um amigo fiel quanto um cão e um homem de fé. Foi neste clima de pesar, que começou o dia:
- Akira, tem gente que de tão bom, não deveria morrer!
- Auau!!!
- Eu sei que a morte não é uma fatalidade, quem moço não morre, velho não escapa... Porém, ninguém deveria morrer com o sofrimento de Matheus, ele não merecia...
- Keihin!
- Então, concorda comigo?
- Keihin! – completou:
- Auau! Auau! Auau!
-Ah!... Você é espírita e a morte é uma passagem... O sofrimento do corpo faz parte do processo de evolução do espírito, sim?
- Keihin!
- Akira, me desculpe, mas não acredito em reencarnação! O homem não é uma planta que morre e sua semente faz renascer outra planta igual, é uma tese que não se sustenta na lógica!
- Auau! Auau! Auau?
- Se eu acredito na ressurreição? Não, eu não acredito!
- Auau! Auau! Auau?
- Em que acredito? Em Deus, mas não acredito que Deus permita o sofrimento do homem e de suas criaturas. A história de Adão e Eva é muito fraca para justificar os males da humanidade, a origem do pecado, o bem e o mal, acredito que é maior o plano de Deus e o nosso sofrimento se encaixe no “mundo das possibilidades” que estamos sujeitos desde o nascimento!
- Nahum! Nahum! Nahum!
- Não entendeu!?
- Eu vou lhe explicar e não se apoquente, porque o “mundo das possibilidades” é um princípio filosófico fácil e prático e desmistifica muita coisa arraigada na mente humana há séculos: não existe castigo divino, destino, acaso, determinismo, premonição e o livre arbítrio é uma “possibilidade”... – Akira ficou impaciente:
- Auau! Auau! Auau!
- Calma, minha linda yorkshire!
- Auau! Auau! Auau!
- Você quer exemplo?
- Keihin! Keihin! Keihin!
- Olhe, antes irei lhe dizer para melhor entendimento que as possibilidades podem ser: necessárias; contingenciais e reais. A necessária é a que se impõe por si, não deixa de ser, que eu queira que eu não queira, é verdade absoluta, portanto, a possibilidade necessária é Deus. A possibilidade contingencial é de natureza absurda, fere as leis da razão e o bom senso de Descartes. E, a possibilidade real é quando as condições socioambientais confluem para determinado fim... – Akira estava impossível:
- Auau! Auau! Auau!
- Você não quer conversa fiada, não é nervosinha?
- Keihin! Keihin! Keihin!
- Bem, já lhe disse o que é “possibilidade necessária”, não foi!?
- Keihin!
- Quer que eu teça mais comentários?
- Nahum! Nahum! Nahum!
- Então, minha querida Akira, eu dou-lhe de exemplo o lamentável afogamento na piscina, seguido de morte, não faz muito tempo, de um garoto de 3 ou 4 anos de idade, numa escola de elite em São Paulo, não obstante o seu aparato logístico de segurança. Claro que o funesto incidente não foi uma punição divina aos pais ou algum carma do filho, mas a possibilidade contingencial! – Akira pulava de contente e suplicou-me o exemplo da possibilidade real, porém, lhe perguntei se ela tinha entendido as possibilidades, necessária e contingencial, assentiu com a cabecinha.
- Olhe minha pequerrucha, particularizar princípio filosófico é imprudência, contudo, o seu pedido é uma ordem, vamos lá! – acrescentei:
- Se o pai de Joãozinho é cantor e sua mãe uma atriz, ele está cercado de circunstâncias socioambientais para ser, também, um artista, porque são as possibilidades reais, circunstanciais, todavia, nada impede que Joãozinho seja um astronauta da NASA, um piloto de Fórmula 1 ou um escritor, aí, os elementos “livre-arbítrio” e “vontade” prevalecem! – pensei que Akira se desse por satisfeito com este último exemplo, ledo engano:
- Auau!? Auau!? Auau!?
- O que tu me pedes agora, sua peralta, é difícil de responder, aliás, eu não sei responder, era o que Sócrates mais exortava: “Conhece-te a ti mesmo”, tu me perguntas além: “Quem eu sou?”, “De onde vim? e “Para onde vou?” perseguem o homem desde que o mundo é mundo. Descartes deu uma resposta que justifica a existência do homem “Cogito ergo sum”, então, “Dubito, ergo cogito,ergo”, mas sua identidade e o seu fim permanecem difícil de compreender! – Akira não se fez de rogada:
- Auau!? Auau!? Auau!?
- Se eu não acredito na ressurreição e na reencarnação, em que acredito? É o que tu me perguntas?
- Keihin! Keihin! Keihin!
- Bem, não sei quem sou eu, de onde vim nem para onde vou, ousaria dizer que nós somos mais do que matéria física, mas não sei se podemos chamar esse “mais” de espírito, de alma ou coisa que valha... Tenho lá as minhas suposições, mas me reservo externar!
- Auau! Auau! Auau!
- Para lhe dizer?
- Keihin!
- Não! Não! Não!
- Prometer lhe dizer outro dia?
- Keihin! Keihin! Keihin!
- Tudo bem, outro dia lhe direi!
- Auau! Auau! Auau!
- Não acredita? Então, juro por Jesus Cristo, Moisés, Maomé e o Deus de Abrão!
- Auau! Auau! Auau! – pergunta-me se sou ateu que o “mundo das possibilidades”, parece coisa de ateu:
- Não, minha amiga, não sou ateu, mas a fé pela fé não tem sentido, é preciso se discutir e desmistificar alguns dogmas religiosos. O homem é suas circunstâncias... Deus não permite nem pune ninguém. Se uma criança morre de uma doença incurável, não foi Deus que quis ou deixou, mas é que havia essa possibilidade patológica nos seus genes e não um castigo dos céus. O princípio da possibilidade se destrinchado, poderá estabelecer um novo padrão de conduta e comportamento do homem e melhorar sua relação com o Criador... – Akira queria mais:
- Auau! Auau! Auau!
- Se eu sou criacionista? Não o criacionismo da Bíblia! Diria que acredito na criação e na evolução No princípio do mundo, minha yorkshire, não havia luz e Deus disse: “Faça-se a luz!” (Gênesis 1,3). Ora, se não havia luz, Deus estava mergulhado na escuridão, aí começa a incoerência exegética... Por quê? Se Deus é luz infinita, não poderia estar na escuridão! Por último veio a criação do homem com Adão e Eva, em consequência o “pecado original” e depois, Jesus Cristo que se sacrifica na cruz para redimir o homem desse pecado e vence a morte com a ressurreição. O mundo real existe e não o de Platão, mas o mundo biológico e o universo que nós conhecemos, devem ter passado por bilhões de anos de evolução, que não implica negar a criação!
- Keihin! Keihin! Keihin!
- Você concorda? Por quê?
- Keihin! Keihin! Keihin! Auau! Auau! Auau!...
- Entendi, obrigado pela solidariedade teórica, porém, espero que eu e você não estejamos blasfemando!
- Nahum! Nahum! Nahum!
- Vamos comer, minha querida Akira, já é meio dia!
- Keihin! Keihin! Keihin…
Autor: Rilvan Batista de Santana
Itabuna (BA), 02 de dezembro de 2012.