Textos


      Noite de terror
         R. Santana


          Era ainda cedo quando chegamos à fazenda “Cacau na Barcaça”, no município de Camacan, do cacauicultor Boaventura Andrade Neto, do administrador à cozinheira, tudo estava nos conformes para nossa visita. O fazendeiro havia propiciado a mim e minha esposa, uma semana de lazer em sua fazenda, depois de vitorioso numa tremenda batalha jurídica de reintegração de posse de outra fazenda e fui seu advogado.
          Uma sesmaria de terra a fazenda “Cacau na Barcaça”. Embora a casa da sede tivesse uma fachada barroca, o seu interior havia recebido uma moderna reconstrução do piso ao forro do telhado, tudo cheirava a novo e riqueza, o quarto que nos foi indicado, os tapetes engoliam os nossos pés, um pôster na parede dos donos da propriedade, um enorme guarda roupa embutido, uma cômoda de 6 gavetas, uma escrivaninha, os cobertores e os travesseiros de penas de ganso tinham cheiro de alfazema e colchão macio de espuma de densidade máxima, um luxo!...
          A velha Bertoleza era riso da cabeça aos pés, tataraneta de escravos, a pele parecia pintada de piche, não se cansava de gentilezas:
          - Doutô se precisá da nega veia é só chamá, eu drumo nus fundus! – eu a tranquilizava, dizia-lhe que tudo estava ótimo, a minha esposa lhe abraçava e lhe era agradável.
          Às 17 horas, mata fechada, estava noite... Depois do banho e vestirmos roupas leves, Bertoleza encheu a mesa de iguarias: bolos de aipim, de puba, de arroz, de ovos, cuscuz, aipim, inhame, carne-de-sol e frango assados na brasa, leite e café - comida leve para que as visitas não se empanturrassem e tivessem pesadelo, dizia. Para não lhe desagradar, comemos um pouquinho de cada coisa e depois de bate papo informal com os camaradas no alpendre da casa grande, fomos dormir.
          Dormíamos o sono dos justos quando fui acordado pela badalação do relógio de algarismos romanos da sala contígua que marcava meia noite. O silêncio da noite me assustava, vez em quando, uma ave noturna quebrava a monotonia com seu canto engasgado e lúgubre, quando ruídos e movimentos estranhos surgiram em todos os cantos da casa como se provocados por alguém ou por alguma coisa.
          A minha mulher ressonava, parecia sonhar profundamente, cutuquei-lhe algumas vezes em vão, então, deixei-a ressonar em paz e me fiz ouvido!... Agora, além do ranger de dobradiças, bater de portas, arrastar de cadeiras, comecei ouvir passos e voz sussurrada de alguém. Não era voz de mulher, queixava-se de alguma coisa numa conversa confusa e interminável, a custo, eu ouvi dizer: “nã... nã... nã quer... nã quer... nã... quer... estranh... aqui”, foi tudo que ouvir! Acho que o medo que se apoderou de mim e a distância do meu quarto dificultavam-me compreender a fala daquele ser estranho deste mundo, ou, do outro...
          O medo crescia ainda mais dentro de mim, puxava com sofreguidão o cobertor até a cabeça, deixando de fora a ponta nariz para respirar, o coração disparava, suava por todos os poros, tampava os ouvidos para não ouvir o toque e toque dos sapatos do fantasma que, agora, se deslocava da cozinha à sala principal, parecia que era manco e arrastava uma das pernas e sempre resmungando.
          Quando tudo parecia perdido, lembrei-me de Bertoleza que ao se despedir com seu “bua noute”, recomendou-me que se ouvisse algo estranho pegasse o crucifixo ao lado da cama, levasse ao peito e rezasse o “Pai Nosso”, ainda debochei da negra velha:
          - Ah, ah, ah... Bertoleza, um homem de 1,87 m de altura, com este corpanzil (mostrei-lhe a caixa torácica e os muques), vai ter medo de alma penada!? Isto é supertição minha negra! – e, caí na risada, mas ela não se fez de rogada:
          - Sinhuzinho, Dêus ti live du coroné Bua Vintura aparecê! – conclui com bazófia:
          - Se esse tal coronel Boa Ventura aparecer, eu irei lhe expulsar a pontapés daqui!... – a negra fez um muxoxo de incredulidade e foi dormir.
          Portanto, quando tudo parecia perdido, lembrei-me de Bertoleza, tateei as peças no escuro, peguei a cruz de madeira, abrir a porta do quarto devagarzinho, com o fôlego no limite, de repente, vi um homenzarrão, branco, de cabelos alinhavados, de terno branco e gravata, em pé, olhando pra mim. Uma força estranha tomou conta de mim, fiz do medo, coragem, empunhei a cruz em sua direção e bradei:
          - Sangue de Cristo tem poder! Sai daqui alma penada! Eu lhe ordeno Satanás, deixe esta alma em paz, em nome do Senhor! Vade retro, Satanás!!! – O fantasma se mexeu em minha direção...
          - Pai Nosso que estais no céu, santificado seja o vosso nome... Ave, Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco... Santa Maria, Mãe de Deus. Rogai por nós, pecadores... Amém! – O ser estranho virou-me as costas e começou se afastar como se o corredor fosse infinito...
          Fui acordado ainda noite por Judite e Bertoleza. A minha mulher me chamava e estapeava o meu rosto enquanto Bertoleza me benzia com galhos de arruda dos pés à cabeça para espantar os espíritos maus! Com dificuldade, abrir os olhos e lhes perguntei:
          - Que dia é hoje?
          - Sexta-feira, 13 de agosto de 2011!
          Tudo estava explicado... Ainda meio grogue, lembrei-me de alguém que disse: “Quem não tem superstição não tem alma”, dali em diante, jamais iria brincar com as coisas do além e falei sonolento:
          - Sangue de Cristo tem poder! Sai daqui alma penada! Eu lhe ordeno Satanás, deixe esta alma em paz, em nome do Senhor! Vade retro, Satanás! – e continuei:
          - Pai Nosso que estais no céu, santificado seja o vosso nome... Ave, Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco... Santa Maria, Mãe de Deus. Rogai por nós, pecadores... Amém!


Autor: Rilvan Batista de Santana
Gênero: Conto
Rilvan Santana
Enviado por Rilvan Santana em 16/10/2012
Alterado em 14/01/2023


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Imagem de cabeçalho: Sergiu Bacioiu/flickr