A face obscura do homem - Encontro indesejado (Capítulo 30)
30
Encontro indesejado
Domingo, 7:00 horas da manhã, a igreja de Gaiardoni estava superlotada. Mais uma homilia de Apolinário que deixou a assembleia de queixo caído. O homem falou sobre a hipocrisia dos fariseus, que alguns católicos usavam a igreja como simples ostentação social. Alguns davam polpudos dízimos mais para aliviar os seus pecados do que movido pela fé.
Cobrou mais atuação dos fiéis, que se espelhassem nos protestantes: exemplo de fé, de trabalho de conversão e tomara Deus que dentro de mais duas décadas, eles não ultrapassassem os católicos. Enquanto o católico era tímido no estudo da Bíblia e não trabalhava na conversão dos indecisos, os protestantes eram determinados na conversão e estudiosos da exegese.
Desceu o malho nos fazendeiros e nos novos ricos: a maioria além da mulher, montava casa para rapariga ou a mantinha na casa de Helvécia, mãe Júlia, Pedrina, ou, nos prostíbulos do Bairro Cajueiro, Buraco-da-jia, Rua do Sport Bar... Uma indecência a olhos vistos de infidelidade. A única função da esposa era cuidar da casa e dos filhos e ir pra cama com um marido bêbado e nojento, e, se ela desafiasse esse costume machista e essa cultura malvada, seria brutalmente assassinada com o descaso da sociedade.
Disse que com algumas exceções, os homens da terra não eram comprometidos com sua fé e com sua religião. A igreja não era somente oferta, missas aos domingos, mas disponibilidade, exemplo, edificação da casa de Deus em bases sólidas para que ela não caia com as tempestades e os infortúnios que a vida nos reserva.
Enfim, exortou Mateus (23, 13-22), que condena o fingimento:
(....)
- Ai de vocês, guias cegos! Pois vocês ensinam assim: "Se alguém jurar pelo Templo, não é obrigado a cumprir o juramento. Mas, se alguém jurar pelo ouro do Templo, então é obrigado a cumprir o que jurou." Tolos e cegos! Qual é mais importante: o ouro ou o Templo que santifica o ouro? Vocês também ensinam isto: "Se alguém jurar pelo altar, não é obrigado a cumprir o juramento. Mas, se jurar pela oferta que está no altar, então é obrigado a cumprir o que jurou." Cegos! Qual é mais importante: a oferta ou o altar que santifica a oferta? Por isso, quando alguém jura pelo altar, está jurando pelo altar e por todas as ofertas que estão em cima dele. Quando alguém jura pelo Templo, está jurando pelo Templo e por Deus, que mora ali.
-Assim seja!...
Pedro Marques, na última fila, estava embasbacado com o discurso do padre, deu vontade de voltar para casa e deixar que José Maria continuasse com sua cisma, aliás, que importância tinha para o advogado se Gaiardoni não fosse Gaiardoni? Nenhuma. Atribuía essa cisma à dinheirama que o fazendeiro tinha no banco e não tinha onde gastar, então, lhe contratou para fuçar a vida alheia, coisa que não lhe apetecia...
Gostava de desafios, desvendar crimes quase insolúveis, mas naquele caso, o único crime seria o erro essencial de pessoa. Oficialmente morreu Hans e não Gaiardoni! Se ele estivesse a serviço do mal, justificaria a empreitada. E, se alguém tivesse de lhe investigar, esse alguém seria a Igreja Católica, a única prejudicada.
Esperou com paciência que os paroquianos fossem embora para falar com Gaiardoni. Não foi fácil, as meninotes, os moleques e as velhas assediavam-no o tempo todo com perguntas e afirmações ingênuas, mas de beata preocupação:
- Padre Apolinário, eu posso vir de vestido estampado para festa de São João?...
- Padre, sua bênção!...
- Eu vou deixar pra limpar a sacristia à tarde!...
- Padre, eu posso participar das quadrilhas juninas?
- Não! – a única resposta.
Mas, quando surgiu oportunidade, Pedro Marques se apresentou:
- Padre, eu sou Pedro Marques, advogado e detetive, mais detetive do que advogado. Eu gostaria que o senhor me concedesse alguns minutos, é possível?...
- Detetive, em que lhe posso ser útil?
- Fui contratado pelo coronel Honório Ladaró! – mentiu.
- A informação que lhe posso dar é de domínio público!
- É de domínio público que Rita Ladaró tinha um amante!? – claudicou, mas esbravejou:
- Senhor...isso.. isso é uma infâmia!... O coronel sabe disso?
- Não!
- E, a polícia!?
- Não!
- Quem sabe disso?
- Eu, o criminoso e alguém que gosta de “Château Hant Brion”!...
- Muita gente gosta desse vinho!
- Mas, sem estricnina!
- Não foi arsênico?...
- O senhor está bem informado, hein?
- Não existe ninguém nesta comunidade que não saiba disso!
- E o amante?...
- Senhor, dona Rita tinha uma conduta ilibada, nunca soube de nada que lhe denegrisse... - Pedro deixou de rodeio e foi direto ao assunto. Aproveitou o convite do padre que lhe puxou para uma sala reservada:
- O senhor era o amante de Rita!
- Eu!? Apenas, lhe dava orientação espiritual... – sem convicção, continuou:
- Se tivesse sido seu amante, a polícia já teria me convocado para depor, não acha?
- Talvez, pela sua posição religiosa e para não despertar a fúria do coronel Honório Ladaró, tenha procurado outro caminho para descobrir o criminoso, mas a polícia vai lhe convocar, não sei quando! – pigarreou, deu tempo ao tempo para novas elaborações e acrescentou:
- Padre, nós não devemos continuar esse jogo de gato com rato, esconde-esconde... Quando eu decidi vir aqui, é que já tenho todas as cartas do baralho na mesa e o blefe é perigoso na investigação, portanto, é inútil disfarçar!
- Se o Senhor está tão convicto que sou o principal suspeito por que razão não me denunciou!?
- Simples, não foi o senhor que a envenenou, mas se o coronel Ladaró descobre que foi chifrado, principalmente pelo padre de sua igreja, ele irá mandar lhe matar mesmo que o senhor se esconda na Cochinchina...
- Bem, não lhe posso mais negar, tivemos um caso... Ela se queixava que o marido era um bruto, tinha outras mulheres, inclusive na fazenda, então... – não terminou:
- Ai, o senhor fez uma caridade – cheio de riso – não foi!?
- Não! Eu me apaixonei por Rita...
- Sua fama de mulherengo vem de longe, padre! – continuou:
- O pessoal do navio que lhe trouxe pra cá me falou de seu affair com as moças!
- Acho que o senhor está me tomando pelo meu colega de viagem!...
-Não, Hans Manfred Spitznamen!
- Hans Manfred morreu!...