A face obscura do homem - A morte no navio (Capítulo 28)
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A morte no navio
R. Santana
Há três dias que um navio Lloyde deslizava lentamente sobre as águas da costa brasileira, com o itinerário de Florianópolis, Rio de Janeiro, Salvador e Ilhéus. O padre Apolinário Gaiardoni e o advogado Hans Manfred pareciam velhos amigos: frequentavam o salão de festa juntos, o convés, as cabines da tripulação, o piloto e os imediatos. Todos tomaram como irmãos gêmeos, o padre e o advogado e eles deixaram acreditar no parentesco... O padre não frequentava o cassino nem bebia, mas gostava de nadar na piscina e era acompanhado por Manfred, despertando cobiça das moças pelo porte atlético que ambos ostentavam. O padre um pouco mais recatado, enquanto o amigo gostava de chamar a atenção das donzelas e não donzelas.
Os camarotes eram quase contíguos, ambos se visitavam a todo tempo. Camarotes exteriores, com grandes janelas, mobiliário funcional, ducha/wc, frigorífico, armário amplo, aquecimento/ar condicionado, cama de beliche de aço, pia de rosto e etc.
Esses três dias foram suficientes para que ambos conhecessem suas histórias, famílias, aonde ia cada um, o advogado tinha saído do Rio Grande Sul, da cidade de Porto Alegre, para Porto Seguro; o padre, de Santa Catarina para Diocese de Ilhéus e se fixar na paróquia de Itabuna. Apolinário Gaiardoni lhe confiou o segredo da fortuna que levava, doada pela colônia italiana de sua terra, para solucionar alguns problemas de caixa da diocese ilheense.
Gaiardoni concelebrou com o capelão do navio. Hans assistiu à missa escondido na assembleia, justificou que havia sido seminarista, conhecia todo ritual católico, porém, após deixar o seminário para estudar direito, havia se desligado completamente da igreja católica e ingressado na igreja adventista, seus estudos sobre Lutero contribuíram, também, para essa decisão: - a igreja fundada por Jesus Cristo, ao longo desse quase 2000 anos de existência, havia cometido erros imperdoáveis, o mais recente tinha sido a tolerância do papa com os promotores da Segunda Guerra Mundial.
Compreendia as razões de Martinho Lutero contra as indulgências, o sacerdotalismo, o celibato, a infalibilidade papal e a adoração de imagens, que a salvação eterna não depende só de boas ações, mas é uma dádiva de Deus através da fé. em Jesus Cristo. Além disto, Lutero traduziu a Bíblia do latim para o alemão, tornando-a mais acessível e mais popular entre os povos germânicos e os bretões. Porém, o protestantismo não lhe preenchia a alma, havia mudado na prática, mas o conteúdo doutrinário era o mesmo.
Ultimamente, estava lendo em inglês, as revistas “SEICHO-NO-IE” (presente dum colega) de Masaharu Taniguchi, líder espiritual japonês e ficara impressionado com a leitura das Sutras Sagradas e os valores morais espirituais dos seus aforismos: “Família e Deus”, “O ser humano é filho de Deus”, “Valorizar os antepassados”, “O mundo fenomênico é projeção da mente”, “Viver é harmonia com a natureza”, “A longevidade da vida depende das boas ações”, “A paz é o bem maior do homem”, “Felicidade é conviver em comunhão com as forças universais”, etc.
Não deixara sua religião, entendeu que a “SEICHO-NO-IE” era mais uma filosofia de vida com elementos pescados no cristianismo, xintoísmo e budismo que daria para conciliar com sua prática cristã, além disso, ele estava procurando algo novo, que norteasse sua vida, que não fosse empecilho para o seu projeto mundano em Porto Seguro, extremo Sul da Bahia, mas o destino quis que tudo fosse diferente...
Já passava das 20:00 horas, não havia mais ninguém nos corredores do navio, quando o padre Apolinário deu uns toques no camarote de Hans que naquela noite, ele foi dormir mais cedo do que de costume:
- Foi dormir mais cedo, hoje, meu querido seminarista?
- Padre, esses dias fora dos meus, bateu-me uma saudade dolorida...
- Eu já me acostumei, o sacerdócio é solitário. Passo meses sem receber uma linha escrita ou enviar ou lhes enviar alguma carta... – de repente, mostrou ao amigo uma garrafa de “Château Hant Brion”:
- Trouxe para comemorarmos!
- O quê?
- Nossa amizade!...
- Mas, desde que nos encontramos, nossa amizade parece século... – disse com riso.
- Eu sei. Tenho lhe estudado todo tempo... Não sei se é qualidade ou defeito, mas acho que o meu querido seminarista deixou de ser padre por causa de mulher! Não foi?
- Sim e não! – e contou-lhe a causa de abandono do seminário:
- Eu estava no finalzinho do curso quando me apaixonei por uma jovem da minha idade... Não sei se foi ela a causa principal para não me consagrar ao sacerdócio, acho que ela pode ter sido o elemento catalisador, porém, não aguentava mais o estudo dogmático da igreja... Sou cartesiano, não aceito os raciocínios pela fé, sem discussão, gosto de conhecer as causas e os efeitos – pigarreou:
- Helena surgiu!...
- E daí?
- Casamo-nos, fui estudar Direito, mas...
- Mas o quê?...
- Fomos felizes por um ano. Ela morreu num acidente de carro...
- Lamento. Acho que lhe cutuquei onde não devia!?
- Não se culpe, o pior passou, já vai longe o tempo, a dor foi substituída pela saudade de amor... – o padre muda de assunto:
- Você acredita na Providência?
- Destino?
- Intervenção de Deus...
- Seja claro, padre!
- Disse antes que lhe tenho estudado... Acho que Deus não aprovou sua saída do seminário, por isto, nos encontramos no momento que mais preciso, é o que chamo providencial... – Hans ficou impaciente:
- Gaiardoni meu amigo, desembuche!
- Preciso de sua ajuda!
- Se puder lhe ajudarei. Por favor, seja claro!
- É segredo, promete-me guardá-lo!?
- Sim!...
A tripulação do “Lloyde” estava em polvorosa, é que, lá pra tantas do dia, a camareira foi arrumar o quarto de Hans Manfred e o encontrou morto! Parecia que dormia de tão acomodado que estava, que tinha se preparado para morrer: mãos cruzadas sobre o peito, olhos fechados, de meias, todo composto, estirado na cama.
Foram encontrar Apolinário Gaiardoni em oração. Foi grande sua surpresa, caiu em pranto, chorou como se tivesse perdido um parente próximo...
O médico do navio emitiu um atestado de óbito em causa da morte tinha sido um infarto fulminante.
Apolinário tomou todas as providências necessárias para que o corpo do amigo e todos os seus pertences chegassem aos seus pais em sua terra natal.