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A face obscura do homem - O beijo do pecado (Capítulo 12)

12

O beijo do pecado

Dona Clô já ajudava nos trabalhos da igreja (afora o polpudo dízimo) desde o velho padre. Agora, com Apolinário Gaiardoni, as coisas do Senhor redobraram, não havia empecilho que a prendesse, se preocupava mais com os trabalhos da igreja do que com os trabalhos de sua casa. Naqueles dias que doutor José Maria acordava com a macaca e lhe cobrava mais compromisso doméstico e de esposa, melhor seria se não o fizesse, ela justificativa sua necessidade de servir a Deus com lamúria e choramingação, deixando-o com sentimento do pior dos hereges, aí, ele voltava-se para os braços de Lia.
Não havia mais casamento de Clô e José Maria, restavam compromissos conjugais e companheirismo. O amor e o sexo já não existiam na relação de ambos, sexo, agora, não passava de impulso, hábito adquirido ao longo de anos de convivência, de vez em quando, José Maria não controlava o seu instinto animal e Clô se deitava passiva.
Naquela manhã, - caro leitor, não me pergunte o dia nem a hora, apenas, eu sei que foi num momento infinito -, ela limpava o sacrário, quando distraidamente, caiu o cálice esparramando as hóstias pelo chão da igreja -, do nada, surgiu Gaiardoni para socorrer-lhe, sem explicação, boca e boca se uniram, selando, assim, o beijo do pecado.
Foi como se uma descarga elétrica tivesse atingido cada célula de cada protagonista. Se alguma máquina fotográfica indiscreta tivesse registrado aquele momento, registraria a cena, mas não mediria o calor e a intensidade do beijo. Só o gênio de um artista seria capaz de pintar o fulgor daquela paixão contida. Não levou muito tempo as bocas coladas e, seria pecado reduzir o significado daquele beijo contando os segundos, mas foi eterno enquanto durou no dizer do poeta Vinícius de Moraes.
Envergonhada, ela não se aguentava nas penas, articulou algumas palavras imperceptíveis como se quisesse justificar o beijo do pecado, o beijo da traição, o beijo diante do altar de Jesus, o beijo da blasfêmia, o beijo de Judas, ou, o beijo do amor.
Ele levantou-se no pique, não parecia envergonhado, não seria temeridade afirmar que Apolinário construiu na mente aquele momento, talvez, não tivesse imaginado a circunstância, mas havia o desejo contido de tê-la nos braços e embebedar-se de seu amor. Hoje, ele compreendia a falta de afeição que sentia pelo seu marido, atribuía às contendas religiosas, certo que não gostava de sua petulância, não gostava do enfrentamento religioso que lhe fazia Jose Maria, porém, naquele momento, descobriu que havia muito mais do que antipatia, a causa principal era o ciúme latente que sentia de Clô, inconsciente, não aceitava que outro a amasse, tivesse por casamento o direito de usar o seu corpo. Não entendia o marido deixá-la por um amante qualquer, mais ainda, não entendia ele montar casa para amante e ter filho, na mesma cidade, além de adultério, era um desrespeito e uma afronta...
Também, não lhe afligiu nenhum sentimento de culpa religiosa, ter cometido blasfêmia tê-la beijado em frente à imagem de Jesus Cristo na cruz. Não havia planejado aquele momento, não tinha cometido adultério, ela não era adúltera, adúltero era o seu marido. Ele fizera o voto de castidade, sim, como todos os padres de sua ordem, porém, a maioria absoluta se deitava com mulher ou com homem. Nunca vira com bons olhos a condenação do sexo pela igreja, condenar o sexo pra Apolinário Gaiardoni, era violentar a natureza e Jesus Cristo escolheu muitos homens casados para apóstolo, e, na história da igreja católica, muitos papas tiveram amantes e filhos.
Clô lhe despertou tesão desde que a conheceu, não pelo fato dela ser rica, mas por sua fibra e seu cuidado com as coisas da igreja, afora, esconder embaixo de trajes comportados, o corpo de uma linda mulher., não que a tivesse apalpado, ou, a tivesse visto nua, no entanto, podia se adivinhar na leitura das linhas de sua fisionomia o que se escondia embaixo daqueles panos.
Clô continuou sem jeito depois do beijo, porém, as pernas não lhe doíam mais, o lhe doía, agora, era o sentimento de culpa: pensou no marido, pensou nos filhos, pensou nos amigos e nos inimigos, que iriam pensar dela se soubessem do seu flerte com o pároco? Eles iriam apedrejá-la como tentaram apedrejar Maria Madalena!... Não queria ser taxada de “amante de padre Gaiardoni”, não queria virar, quando morresse, “mula-sem-cabeça”, como dizia o povo, nem concubina de padre, se não fosse possível conter os seus impulsos de mulher, iria para outra igreja, mas não cederia, preservaria sua moral e de sua família, no entanto, Apolinário lhe fez ver o contrário:
- Perdoe-me, eu não resisti...
- Vamos esquecer tudo!
- Impossível, foi um ato premeditado...
- O quê!?
- Não posso esconder de Deus nem de ti o meu amor...
- Sou uma mulher casada...
- Com um homem que não te ama!
- É meu marido perante Deus e pai dos meus filhos!
- É pai dos seus filhos e marido no papel, deixou de sê-lo desde que montou casa para amante...
- Aqui, em nossa região é normal, até os maridos pobres têm amantes!... – continuou:
- Condição necessária, em nossa terra, para preservar o casamento.
- Uma pessoa esclarecida e independente não se sujeita à humilhação pública!
- O importante é que a família está unida!
- O adultério não tem importância desde que a família esteja unida?
- É mais ou menos o que os homens e as mulheres pensam!...
- Então, não é pecado te amar, desde que você continue casada?
- Para mulher não existe tolerância! – e completou:
- A Bíblia diz: “... qualquer que repudiar sua mulher, a não ser por causa de prostituição, faz que ela cometa adultério, e qualquer que casar com a repudiada comete adultério.” (Mateus: 5: 32), portanto, quem se aproxima da mulher repudiada comete adultério...
- No confessionário, o seu marido é o rejeitado!... – Clô não se conteve:
- O senhor não tem o direito de revelar segredo de confissão!
- Não existe ninguém neste altar além de mim e ti!
- Silêncio.
Clô não lhe respondeu, não seria necessário, Apolinário Gaiardoni conhecia sua alma. Ela lhe compartilhava em segredo de confissão, os seus sonhos, as suas angústias, os seus medos, os seus sofrimentos e as estripulias de José Maria. Ele sabia mais do que ninguém que o seu casamento não passava de fachada, se não era rejeitada com palavras, era rejeitada com ações. E, quando ela ameaçou se retirar, foi envolvida nos braços fortes do padre, não mais ficou sem palavra ou envergonhada, enlaçou com os braços o seu pescoço e se entregou...
Começava, ali, sob os auspícios da cruz de Jesus Cristo, o romance entre duas pessoas parecidas nas sutilezas do coração, mas de almas diferentes.
Rilvan Santana
Enviado por Rilvan Santana em 23/09/2012


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