Sovinice
Sovinice
R. Santana
I
Na relação de consumo, existem as pessoas de bom senso, as perdulárias e as sovinas. As primeiras compram somente o necessário, sem ansiedade, equilibrando despesa e receita, são as mais felizes, as perdulária são estróinas, gastam o seu e o dos outros. Gastam por antecipação, o salário de um mês, elas gastam em um dia. São pessoas irresponsáveis, compulsivas, comprometem sua sobrevivência e de seus dependentes. Lá dentro da sua cabecinha deve haver genes codificados com um comando esbanjador. Essas pessoas aparentemente normais, são emocionalmente desajustadas e infelizes. Por último, as pessoas sovinas, as mais infelizes. Sacrificam literalmente suas vidas e daquelas pessoas que gravitam em torno delas.
Deja pertencia ao universo dos mesquinhos e dos somíticos. Era um pão-duro, um avarento. Seus conterrâneos achincalhavam-no, dizendo que Deja só abria a mão para receber a hóstia porque era de graça. Economizava tudo, menos palavra. Era falante, conversador, conselheiro e extrovertido. Sua política era da boa vizinhança, não cismava com ninguém. Se alguém queixava-se de um amigo comum, ele não dava razão nem tirava. Tinha no sangue a arte de agradar, de acender uma vela para Deus e outra para o diabo.
Eu era menino quando o conheci. Ele deveria ter na época uns quarenta anos. Porém, seu rosto vincado e queimado pelo sol, dava-lhe marcas de expressão de um homem mais velho. Gostava de usar botas meio cano, chapéu de abas largas, calças cáqui e camisa de mangas compridas de brim cáqui. Era um homem branco, alto, bem apessoado mas rústico devido a labuta do trabalho grosseiro.
Para a maioria pobre da cidade sergipana de Lagarto, Deja era considerado um homem rico. Possuía fazendas de gado, malhadas de fumo, olaria, casas residenciais e salões alugados na cidade. Distante uma légua de Lagarto, num lugarejo chamado Coqueiro, ele possuía um sítio que era misto de residência e quartel general dos seus negócios. Lá ele recebia vendedores e compradores de gado, vendia tijolos e vendia toneladas de fumo para exportação. Pagava aos seus empregados da cidade, aos trabalhadores das malhadas, aos peões do gado e os vaqueiros. Poder-se-ia dizer que lá, em sua residência-escritório, era também, o lugar das suas transações financeiras. Quando alguém lhe tomava um dinheiro emprestado, era ali que ele atendia. Por questão de segurança, simulava pegar o dinheiro no banco e o entregava um ou dois dias depois. Se uma pessoa já lhe devia e queria mais dinheiro emprestado, ele dizia:
- Meu filho (chamava todos de filho, mesmo se fosse mais velho), um velho não suporta um novo nas costas!. – Então, quando alguém o surrupiava com coisa à toa:
- Quem rouba um tostão, rouba um milhão! – Se uma pessoa queixava-se que trabalhava muito e nada adquiria, ele o consolava:
- Meu filho, a quem Deus prometeu vintém não dar dez réis. Quem nasceu para ser tatu, morre cavando! – Certa feita flagrou um dos seus empregados jogando fora umas esporas velhas:
- Meu filho, não jogue nada fora, tudo tem sua serventia. Se no momento algo não presta, guarde-o por seis meses. – Seu Deja e se daqui a seis meses não tiver utilidade? – Guarde-o por mais seis meses, irá ter serventia uma dia!... – Era uma sovinice racional.
II
A mulher e os filhos comiam o pão que o diabo amassou. Os filhos
estudavam em escola pública. Além de percorrerem uma distância de seis quilômetros todos os dias, a pé ou escanchados em um animal, nunca eram vistos com dinheiro fazendo festanças. Se levassem algum dinheiro, por certo, tinha sido dinheiro por serviço prestado ao pai. Se não tinham dinheiro para merenda, sua mãe enchia as mochilas de frutas do próprio pomar.
Guiomar Rodrigues, mulher de Deja, tratada por D. Guidinha, tinha sido escolhida desde infância pelos pais de ambos para desposá-la. Era uma tradição da terra, os pais escolhiam a esposa para os seus filhos em tenra idade. Além disso, Deja era primo carnal de sua mulher pelo lado de sua mãe.
D. Guidinha era uma morena afoita, temperada pelo clima íngreme do nordeste. Embora tenha tido estudo regular, concluindo o curso de magistério em Aracajú, adaptou-se fácil à lides da lavoura e da pecuária. Ordenhava como poucos as vacas de sua fazenda. Não era estróina mas não tinha se acostumado com a mesquinhez do marido, por isto, as brigas eram constantes e quando o assunto era filho, o conflito do casal excedia ao normal em palavras e impropérios.
- Seu Deja, as nossa filhas estão mocinhas, não.podem vestir-se como umas peregrinas!
-Elas têm que trabalhar. Nunca achei nada de mão-beijada. Quando chegava da escola, meu pai mandava ir almoçar e procurar o caminho da malhada num sol de 38 graus, se não fosse o chapelão que eu usava, morria estorricado!
-Seu unha–de-fome (quase gritando), não estou lhe pedindo nada!... Lembre-se que sou sua sócia pelo casamento. Afora isto, meu pai me deu como dote 300 cabeças de gado e dois alqueires de terra, patrimônio maior do que você tinha naquela época. Me dê o dinheiro, senão, vou vender o gado e se é homem vá lá empatar, seu miserável !... – A mulher virava uma fera, Deja tremia de raiva, mas na casa do sem jeito cônscio da fera mãe que tinha, acabava cedendo...
III
João de Juvêncio e Amália Santana, era um casal que tinha tido uma convivência feliz por alguns anos depois do casamento. Ele, primo de primeiro grau de Deja; ela, tinha sido a segunda mãe de D. Guidinha, tanto pelo batismo, como era comum a mãe de Guidinha deixá-la dias a fio com D. Amália. Não tendo filhos, João e Amália tinham loucura pela afilhada.Depois que ela casou-se, pela distância e rotina do casal, as relações do dia-a-dia de Guidinha e seus padrinhos foram esfriando-se, permanecendo o amor e a consideração.
João era um homem trabalhador. Tinha construído um patrimônio razoável. Como não tinha filhos nem irmãos, depois dos 50 anos, ele e a mulher, começaram dilapidar seu patrimônio por força do vício da cachaça e por ele ficar entregue ao cuidados de pessoas inescrupulosas e desonestas. Se Deja e a mulher não intercedessem, ficariam às esmolas, Guidinha despertou o marido.
- Deja padrinho precisa de socorro. Já vendeu o gado quase todo, não trabalha mais.A fazenda está entregue ao léu da sorte. Ele e madrinha passam o dia bebendo. Bodegueiro manda-lhes de 2 ou 3 litros de cachaça por dia. Estão esbanjando os seus recursos, além disso estão sendo usurpados e vilipendiados em seu patrimônio. Se não tomarmos providências, irão se acabar na miséria. – Deja que não deva prego sem estopa, foi-lhe fácil tomar as rédeas do negócio do primo e padrinho de sua mulher.
Deja e Guidinha, devagar foram colocando ordem na casa e na vida do casal alcoólatra. Para Amália e João, Guidinha era uma filha e a recíproca era verdadeira. Ela tinha um grande apreço pelos padrinhos, principalmente, por não ter mais os pais biológicos. Não de mala e cuia, mas com marido e filhos, ela mudou-se para casa deles.
Algum tempo depois, Guidinha tinha transformado a casa dos padrinhos em um lugar higiênico e aprazível de morar. Entendendo que era impossível suspender de vez a bebida dos padrinhos, passou racionar com carinho e disciplina a bebedeira de João e Amália. Deixou de comprar na bodega que os estavam espoliando e passou encomendar barris de 50 litros de cachaça por mês. E forçá-los na alimentação. Por outro lado, Deja soergueu a fazenda do primo e as coisas começaram tomar o ritmo de antes.
João e Amália no aconchego da afilhada e dos filhos dela, netos adquiridos, começaram tomar gosto na vida e diminuíram de maneira considerável o vício. Sua afilhada tinha reduzido em mais da metade o uso de bebida, meses depois.
Poucos anos depois, vítimas de seqüelas da bebida e da idade, morrem quase ao mesmo tempo, João Juvêncio e Amália, deixando para Guiomar Rodrigues, sua herdeira universal, todos os bens.
IV
D. Guidinha morreu 10 anos depois que os padrinhos se foram, contraiu um carcinoma no seio. No início da década de 80 do século passado, o tratamento dessa doença era incipiente ou quase nenhum, em conseqüência da doença, ela morre na flor da maturidade, em estado deplorável, na capital paulista, ladeada de filhos e netos. Seu marido recusou-se acompanhá-la à cidade de São Paulo, alegando falta de aptidão par transitar num grande centro urbano – as más línguas diziam que Deja estava preocupado com o tamanho da conta...
D. Guidinha morta a casa cai. Ela era o ponto de equilíbrio da família, ela que aparava todas as arestas e conflitos entre pai e filhos, deixou um enorme vazio. Deja à medida que envelhecia, tornava-se ranzinza e mais avarento. Com a morte da esposa, torna-se taciturno e intratável, um dos motivos é que teria de dividir por força de lei, a fortuna com os filhos. Filhos independentes, começam afastar-se cada vez mais dele.
As pessoas mais velhas e mesmo as mais novas, juravam de pés juntos que Deja era possuidor de muitos milhões de dinheiro. Nos últimos anos de vida, era um asceta desprovido de ascetismo. Comia pouco e vestia as roupas surradas pelo uso e pelo tempo. Enquanto isso, o seu saco da usura não tinha fundo, seus negócios não paravam de crescer, cada dia mais rico e mais ridículo.
V
Início de 1985, morre em seus aposentos, de infarto aos 67 anos de idade Benjamin Deja Santos Rodrigues, fora da família, na companhia de uma velha governante, duas ajudantes de cozinha e dois agregados que faziam quando necessário o papel de segurança.
Passado velório e sepultamento, filhos e netos começam vasculhar os ativos e passivos do pai e avô. Não encontraram dívida, Deja tinha aprendido desde cedo que a compra à vista lhe proporcionava maior capacidade de negócio e pechincha e como conseqüência, aferia grandes lucros.
A surpresa estaria por vir. Consultado os bancos, não havia saldo devedor, todavia, o crédito era ínfimo em relação ao volume de negócios de Deja. Os filhos e os netos não entendiam como seu pai e avô, movimentava um grande latifúndio e um comércio de aluguéis na capital e no interior, uma olaria, comércio de fumo, compra e venda de gado etc, etc... com aquele pingo de dinheiro.
O filho mais velho de Deja, que tinha-lhe herdado o nome e a mesquinhez só que de forma mais burilada, começou suspeitar que seu pai tinha usado algum artifício para esconder o dinheiro ou o tinha emprestado a juros que era uma de suas práticas. Mas dentre os papéis encontrados, a quantidade de notas promissórias e os valores não eram significativos Por isto, procurou sua madrinha, a única pessoa depois de sua mãe que seu pai confiava cegamente e com a morte dela, essa relação se tornou mais recorrente. Tudo que Deja fazia ou ia fazer, madrinha Josefa (como todos chamavam-na), sua governanta e amiga há 40 anos, era a primeira a tomar conhecimento e opinar.
- Madrinha, meu pai deixou algum dinheiro? – Sim, meu filho, mas ele me fez uma recomendação... – Qual foi? – perguntou Dejinha – Que se fizesse uma reunião com todos para entregar o dinheiro!... – Madrinha, já deveria ter nos falado! - Meu filho, deixe seu pai esfriar na cova, que pressa é essa? – Não é pressa, é que temos de tocar os negócios e é necessário dinheiro. – Então, todos aqui amanhã – convocou a negra.
O quarto era enorme. Um misto de quarto e escritório. Em frente à porta ficava um guarda-roupa de jacarandá de 6 portas, do lado esquerdo, uma prateleira de livros e objetos pessoais, do lado direito, outro guarda-roupa menor e completava o espaço, um escrivaninha de 5 gavetas, nela, Deja usava sua máquina “Remington”antiga de datilografar, em um dos cantos, um porta-chapéu repleto deles, noutro lado, a porta da suíte. A cama ficava no meio do quarto, em cima de um tapete persa retangular azul. Todas essas peças, tinham sido estrategicamente colocadas com a finalidade de deixar o ambiente aconchegante e transitável. Nele se enxergava a mão feminina de D. Guidinha.
A cama merece um parágrafo especial. Feita e trabalhada no jacarandá. Armada, um homem era incapaz de deslocá-la de um lugar pra outro face o seu peso. Os pés grossos e torneados, recebiam as duas cabeceiras e as peças laterais. Não era muito alta, porém, uma pessoa de baixa estatura, sentado, não arrastaria os pés no chão. Na cabeceira mais alta, ficavam duas gavetas espaçosas que serviam para colocar um livro e um abajur em cima das tampas. Além disso, na cabeceira mais alta, ela estampava um lindo desenho talhado em que um moço oferecia uma flor a uma linda jovem. A cama era uma obra de arte...
Os herdeiros estavam apreensivos dentro do quarto. Madrinha Josefa pede aos mais moços que tirem da cama um pesado colchão ortopédico e puxa uma trava disfarçada, de madeira, liberando o lastro da cama em forma de tampa, pondo à vista milhões de cruzeiros em maços de dez mil cada.
Nossa, quanto dinheiro!!! – gritaram todos.
Hoje, na cidade de Lagarto interior de Sergipe no mausoléu da família Deja, ler-se uma lápide:
“Jaz aqui um homem que tinha como divisa o dinheiro e sobre ele pereceu”
Deja
1918/1985
Autor: Rilvan Batista de Santana