Tempos de loucura - R. Santana
O velho Manduca andava com dificuldade para ir ao balcão de guichês comprar sua passagem de ônibus de volta para casa quando foi cercado por três jovens policiais (dois homens e uma mulher), que incontinenti, identificaram-no, revistaram-no e algemaram o inofensivo velho. O pobre entregou-se sem esboçar dificuldade, atoleimado, sem entender os acontecimentos, mas algo lhe dizia que estava acontecendo...
Na delegacia, mais aturdido ficou, pois a quantidade de homens, mulheres e adolescentes que tentaram linchá-lo (salvo pela bravura e intrepidez dos policiais), era incalculável, o “seu” Manduca cada vez entendia menos, menos ainda quando a turba enfurecida gritava:
- Assassino!
- Assassino de criança!
- Pedófilo!
-Monstro!...
Os diligentes repórteres de rádio, jornal e televisão, escravos do “furo” e sem compromisso com a verdade, aglutinavam-se sobre o velho Manduca para puxar sua primeira declaração:
- Foi o senhor que matou Carlinhos?
- Por que fez isso com o menino!?
- Além do estupro, o assassinato?
- Um homem de sua idade!...
Quando o velho entrou na delegacia, naquela tarde, culpado pelo clamor das ruas, pelas provas circunstanciais e robustas da polícia e, pelo desejo incontido de alguns medalhões do governo, dali em diante, ele estava na casa do sem jeito...
Medidas cautelares para enfiar “seu” Manduca atrás das grades foram tomadas de pronto: Polícia e Ministério Público agilizaram todos os trâmites da denúncia e num fechar de olhos, a prisão temporária e a prisão preventiva foram decretadas pela Justiça.
A opinião pública e os parentes da vítima não se cansaram enquanto o velho Manduca não foi indiciado, pronunciado culpado e réu de júri pelo crime hediondo, sórdido, repulsivo, que fez vítima fatal o garoto Carlinhos.
***
O velho Manduca vivia sozinho desde que sua mulher morreu. Os seus filhos ganharam o mundo sua mulher ainda viva. Na rua onde morava era amigo de todos e quando ele foi preso acusado de pedofilia e crime de morte, os seus vizinhos recusaram-se acreditar, porém, alguns pais ficaram apreensivos, pois seus filhos foram várias vezes confiados aos cuidados do vovô Manduca...
Afora o corpo de Carlinhos ter sido encontrado no quintal do “seu” Manduca, outro fato relevante que fez o velho passar da condição de suspeito para acusado é que a vítima vivia diuturna em sua casa.
Ele tratava as outras crianças com carinho e afeição, mas Carlinhos era o seu xodó, o seu bem-querer, neto e filho do coração ao mesmo tempo. Levava e ia buscar o moleque na escola, levava-o ao shopping, ao parque, ao piquenique, ao dentista, ao médico, enfim, Carlinhos só voltava para casa à noite pra dormir por insistência do “seu” Manduca, às vezes, por insistência dos seus pais quando lhes tocavam uma pontinha de ciúme ao vê-lo dia a dia mais apegado ao velho.
O povo enfurecido é irracional, ele excede todos os limites da racionalidade e do bom senso: denigre, destrói, pilha, barbariza e mata se motivado por uma causa aparente justa. Assim ocorreu com o caso Carlinhos que após o levantamento cadavérico e outros procedimentos, uma turba enfurecida, violou, pilhou e destruiu a casa do velho Manduca.
***
Embora o velho Manduca ainda chorasse a morte de Carlinhos, já se sentia à vontade com os seus colegas de presídio. No início, enfrentou olhares de desconfiança e raivosos, mas o tempo e o seu modo de ser, deixaram os outros detentos arrefecidos, certos de que o velho tinha sido vítima de uma tramóia criminosa, urdida por alguém de mente diabólica.
Filhos, filhas, genros e noras a pretexto de residirem e trabalharem noutras cidades, poucas vezes visitaram-no, deixando o velho à própria sorte... Os seus vizinhos além de não serem solidários, alguns engrossaram o séquito dos seus inimigos que destruíram e pilharam sua casa.
Porém, um mês depois do crime, lhe é anunciado uma visita inesperada, alguém que o velho Manduca ajudou e ignorava o seu paradeiro:
- Lembra-se de mim? – O velho consertou os óculos:
- Mas... mas... você não é o João da comadre Dina!?
-Ah, velho danado!... - os dois se abraçaram num chororô...
***
Um ano depois.
O “assassino de Carlinhos” tinha caído no esquecimento do povo se de quando em vez a mídia não o cutucasse... O “vovô assassino de criança” ainda levantava o IBOPE, quando três marginais de alta periculosidade foram presos. Um deles começou debochar com o velho desde os primeiros dias:
- E aí vovô, gosta de um rabinho novo hein?... – às vezes, “encoxava” o velho no tumulto do almoço que palidamente reagia:
- O senhor me respeite!... – O bandido desabava de rir:
- Ah, ah, ah!!! – mas, certo dia:
- Não tem vergonha mexer com um homem dessa idade!? – O bandido gritou para todo refeitório:
- Mais uma “bichinha” gente!!!
- Vagabundo, sua casa caiu!!!
Não foi mais do que um quarto de hora para que o refeitório do presídio de Tainá ficasse aos frangalhos, aos cacos, como se ali tivesse passado um grande redemoinho destruindo todos os objetos e utensílios do salão, além de alguns feridos e três mortos: o autor da confusão, o seu sectário e, o velho Manduca!...
***
- Não! Não! Não, meu pai!!!
- Filho desnaturado, você não dá ao velho!?
- Não! Vovô Manduca não faz isso comigo!
- Se ele não faz, eu faço!
- Você é um monstro! – O menino gritava e chorava:
- Vou dizer a minha mãe! Vou dizer a minha mãe! Vou dizer a minha mãe!...
- Não vai! Eu vou te matar!...
O seu pai, tresloucado, esbofeteou-lhe e esganou-lhe até o último suspiro.
***
Parodiando Rousseau:
Deus criou o homem e de sobeja deu-lhe bons sentimentos, inteireza moral, busca espiritual, amor e paz. A sociedade corrompe o homem, cultiva a hipocrisia, e, semeia a maldade...
Autor: Rilvan Batista de Santana
Itabuna, 19.03.2011