Rosas com espinhos
Rosas com espinhos
R. Santana
I
Eu morava no apartamento 509 e ele no apartamento 302 do Edifício Pindorama, na Alameda das Acácias na capital baiana. Não tínhamos nada em comum, eu, um jovem estudante de medicina; ele, um velhinho de 87 primaveras, aposentado, que nos idos de 1940 trabalhou na antiga rede ferroviária Central da Bahia, escoando as riquezas do Recôncavo e transportando gente para Salvador, agora, 30 anos depois, passava parte do seu tempo, conversando e observando as crianças brincarem no playground do edifício, às expensas dos filhos doutores.
Gabava-se ter formado os cinco filhos (três homens e duas mulheres), não se lamentava não ter construído patrimônio, pouco tinha estudado, ou nada estudado, aprendera nas leituras da vida. Nunca brigou, mas muito namorou e demais farreou e quando resolveu juntar os seus cacos com os da mãe dos seus filhos já era um solteirão experiente e curtido.
Embora tivesse pouco freqüentado a escola, era um ávido leitor, em particular, a Bíblia, conhecia todos os seus livros, não obstante não freqüentar nenhuma igreja. Católico de nascimento, afora o seu casamento e dos filhos, contava nos dedos das mãos, os dias que tinha ido lá.
Conheci João Rodrigues Damasceno, “vovô João” pelos meninos, em 1987, no playground do Pindorama. Inicialmente, não houve empatia, trocamos poucas palavras, cismava e tinha ciúme do jeito alegre e descontraído do “vovô João”, principalmente, os meus sobrinhos. Aninha o idolatrava, quando lhe disse que ele não era seu “vô”, ela embraveceu:
-Tio ele é o meu “vô”, de Paulinho, de Andréa... – enumerou os nomes de todos os amiguinhos do “vovô João”. Ainda insisti:
-Ele é um velho estranho, não é seu “vô”!... – foi a gota d`água. Aninha rompeu num choro convulsivo que me custou contê-lo.
Não mais contrariei os meus sobrinhos, menos ainda Aninha e quando me queixei com ciúmes, daquela amizade, aos seus pais, a tinta borrou o papel:
-Mano, aquele velhinho é do bem, não coloque caraminholas nas cabecinhas das crianças! – sentenciou Gilda. O cunhado foi mais duro:
-Ele dá às crianças o carinho que lhe falta!...
II
Para Descartes todo homem jacta-se possuir bom senso, desde o ignorante ao sábio, desde o medroso ao mais arrojado valentão, desde o fraco ao mais forte, desde o jovem ao velho, todos enfim, possuem esse ponto de equilíbrio emocional quando a ocasião se faz necessária, comigo não foi diferente, tive bom senso, deixei a ciumeira injustificável e aproximei-me do “vovô João”.
Não foi uma aproximação repentina, um “bom dia” hoje, um “boa tarde” amanhã, um “até logo” depois e assim nos tornamos amigos, ou melhor, nos aproximamos, não, minto, pouco e pouco, eu que me aproximei.
III
Naquela época, eu não acreditava em espíritos, vidas passadas, carma, transmigração, reencarnação, ressurreição etc., etc. Cria na ciência, cria que a matéria condensada em energia tinha sido eclodida para a formação desses mundos há bilhões de anos (um arremedo da teoria do Big - bang), na Teoria da Evolução de Darwin e cria principalmente, na evolução da ciência para o desenvolvimento e solução dos problemas da humanidade.
É da natureza do jovem a transgressão às idéias prontas, gostar do proibido, aderir ao novo e pensar que é eterno, detentor do saber, raros, raríssimos se despojam dos seus ideais de mundo pela fé, mesmo que os seus lábios confessem crença, as suas atitudes são infiéis.
IV
Deus faz a oportunidade e o homem tira proveito. A oportunidade surgiu naquela tarde, quando encontrei o ancião, sozinho, no playground do prédio, enfiado de cabeça, na leitura da Bíblia:
-Boa tarde, senhor! – ele olhou-me por debaixo dos óculos:
-Boa tarde, meu filho! – estiquei o encontro:
-O senhor é evangélico?
-Se eu sou “crente”?...
-Sim!
-Não, sou católico! – continuou:
-O senhor é “crente”?
-Não, eu sou agnóstico!!!- respondi-lhe com empáfia.
-É uma nova religião?
-Não, senhor, é uma filosofia de vida!
-Não entendi...
-Creio naquilo que é racional e provável!... – acrescentei:
-Esse negócio de alma, espiritismo, ressurreição...
-O senhor acredita em Deus?
-Acredito numa Energia Absoluta, causa e efeito, concomitante, não à semelhança do homem! – continuei:
-Não entendo um Deus que deixou de igual modo, dor e sofrimento para justos e injustos, para bons e maus, para pecadores e inocentes... – o velho não me interrrompeu:
-Que deixou o homem a mercê do mal e a maldade tem prosperado mais do que o bem! – o velho quase não falou, ou melhor, não lhe dei tempo pra falar, inundei sua ignorância de conhecimento, senti-me naquele instante, o mensageiro da ciência, o arauto do conhecimento.
V
Voluntário e consciente fiquei dois dias sem visitar o playground, degustando cada palavrinha que tinha dito ao velho João, gozando da derrota que lhe tinha imposto, ocasião que lhe demonstrei mais conhecimento, impus-lhe o meu pensamento, deixei-o sem voz e vez, decerto, tinha me vingado dele ser o preferido daquela criançada, principalmente, os meus sobrinhos.
Porém, dois dias foram mais que suficientes para que a minha vitória caísse como um castelo de cartas, em série, uma após outra e passados alguns anos, hoje, com os cabelos alinhavados pelo tempo, dou-me conta de quanto fui arrogante, pretensioso e injusto cismar com um pobre homem que não desejava outra coisa, senão, viver os últimos tempos que lhe restavam de vida, gozando do afeto de todos, sinto vergonha recordar a lição que me deu:
-Boa tarde!
-Ah, ah, ah..., boa tarde doutor!... – não gostei da ironia:
-Não sou doutor!
-Falta-lhe somente o canudo, mas tu és um jovem de ciência!
-Não, senhor, eu sou apenas um estudioso...
-A ciência é mais uma lição de Deus!
-Não, a ciência é fruto da experiência humana!
-Meu filho, é a história do ovo e da galinha...
-Não entendi!
-O conhecimento absoluto é um segredo de Deus e suas manifestações também!
-O senhor está misterioso!!!
-Meu filho não se irrite, a idade tem dessas coisas...
-Continuo sem entender, senhor João!
-A sabedoria e a compreensão chegam com a idade... – continuou:
- O conhecimento do homem é comparado à luz de um candeeiro à luz infinita de Deus! – permaneci calado.
-Tu conheces esta flor? – não me tinha dado conta da flor...
-Uma rosa!
-A rosa é a rainha das flores... – o velho continuava reticente e misterioso, prosseguiu:
-Tu sabias que a rosa é o símbolo das deusas do amor, Afrodite e Ísis?
-Não cultivo mitos. Os mitos encerram fantasias e devaneios. Gosto de fatos, do provável, do concreto, não importa o caminho lógico... Poesia, mito, fábula... – ele interrompeu-me:
-Filho, eu não pensei que tu foste tão ignorante! – não me contive:
-Eu ignorante? O senhor está delirando?!
-Não se avexe filho, sei quem tu és e o que fazes, mas Pasteur, o gênio francês da ciência, deixou escrito: “Um pouco de ciências nos afasta de Deus. Muito, nos aproxima”. Tu precisas de mais ciências! – fui indelicado:
-Ma... mas... ve... veja... quem fala? Um velho maquinista decrépito!
-Filho, eu não vou perder as estribeiras, a idade traz decrepitude física, mas a idade me deu muitas alegrias e mais sabedoria. Tive pouca escola, mas fui e ainda sou um ávido leitor dos homens e do mundo! – arrependi-me:
-Desculpe-me senhor! – fez ouvidos moucos:
-A rosa é o símbolo da vida. Suas pétalas trazem perfume, doçura, bem-estar, tranqüilidade, beleza, amor e paz; as suas folhas trazem o verde da esperança, a esperança do homem, a esperança de dias melhores; os seus galhos de espinhos ferem e simbolizam a dor e o sofrimento que a vida nos reserva. Porém, só dedicamos uma rosa àquela pessoa que amamos, ao nosso bem-querer, que gostamos... – tomou fôlego e continuou:
-Filho, a humanidade foi redimida pelo amor de Jesus Cristo. O mundo se mexe no eixo do amor e quando falta esse ingrediente nas relações do homem e dos povos, culminam os crimes, as atrocidades e as guerras... – estava inspirado:
-O amor é o recheio da paz. Tu já pensaste numa ciência sem amor? Se tu pensaste, tenho pena de ti, pois tu não passarias de mais um mercantilista, de um mercenário, de uma prostituta do conhecimento e se tu me permites mais um tempinho, quero encerrar a minha fala com a leitura do Apóstolo Paulo em Coríntios I, Cap.13 V. 1,2:
“Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, e não tivesse amor, seria como o metal que soa ou como o sino que tine”;
“E ainda que tivesse o dom de profecia, e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, e ainda que tivesse toda a fé, de maneira tal que transportasse os montes, e não tivesse amor, nada seria”.
Não houve réplica nem tréplica. Não houve tempo, o véu da noite começava nos cobrir, não obstante a forte luz dos refletores do playground. O vô João pouco e pouco, levanta-se a custo, no entanto, houve tempo para lhe dizer:
-Muito obrigado!...
Autor: Rilvan Batista de Santana
Gênero: conto