Textos


Um chato estudante de português
R. Santana

     Tom Zé e Manduca são dois jovens vestibulandos dos tempos atuais. Os dois são do bem, porém, Tom Zé pegou a mania de corrigir os vícios de linguagem de Manduca e como o hábito é uma segunda natureza, estendeu essa mania a todos os seus conhecidos e não conhecidos que cruzassem o seu caminho e cometessem um pecado contra o nosso idioma.
     Manduca mais ladino, mais inteligente, porém, menos esforçado e mais desleixado intelectualmente, vez ou outra, Tom Zé puxava-lhe a orelha:
     -Manduca não é “...onde irei?” , mas “...aonde irei?” – continuou: - as duas palavras são advérbios de lugar, porém, essa combinação do a+onde, é feita quando o verbo indica movimento, notou a diferença?
     -Tom Zé, você é chato!... A linguagem oral é passível de lapso, o objetivo da linguagem é a comunicação, desde os primitivos, as regras da gramática vieram depois com os gramáticos ou não foi assim?
     -Entendi colega, mas deixe isso para os analfabetos que falam no seu dia-a-dia: “pro mode”, “pro quê?”, “nós vai”, “foi eu”, “nós famos”, eles têm razão, não alisaram os bancos da escola, nós, não! Não podemos assassinar a “Língua de Camões” e a “Última Flor do Lácio”...
     -Quem construiu a língua não foi Camões, Castilho, Gil Vicente, Bocage, Eça, Júlio Dinis e tantos outros escritores portugueses ou brasileiros. Quem construiu a língua foi o povo, os soldados romanos com o seu latim vulgar e suas corruptelas e os mercadores ibéricos. Concorda comigo, sabichão!?– ironizou Manduca.
     -Não sou sabichão! – bufou Tom Zé.
     -Parece!
     -Às vezes, lhe faço algumas observações por conta da nossa amizade, como iremos ser advogados criminalista, a nossa retórica terá que ser a retórica de Cícero!...
     -Não, Tom Zé. Você corrige a mulher da cantina, o porteiro, os colegas, os professores... – fez uma pausa e continuou:
     -O seu zelo pela língua tornou-se chatice, uma obsessão!
     -Manduca não se zangue comigo – mais calmo e menos afetado -, é que não compreendo como um professor, um colega, uma pessoa de diploma e anel, continue falando: “menas”, “siclano”, “poblema”, “própio”, “estadia”, “normaço”, “nós samos”, “fazem dez anos”, “é eu”, ao invés de: “menos”, “sicrano”, “problema”, “próprio”, “estada”, “mormaço”, “nós somos...”, “faz dez anos”, “sou eu”. Não compreendo confundir “discriminar” com “descriminar”, “iminência” com “eminência” e alguns profissionais ainda usarem: “previlégio”, “dioturnamente”, ferindo o nosso ouvido!...
     -Meu caro Ruy Barbosa dos tempos modernos, eu entendo a sua preocupação, não compreendo a sua obsessão! Os tempos são outros... Tu já estudaste a linguagem jovem dos e-mails?
     -Uma revolução às avessas do idioma! – sentenciou Tom Zé.
     -Uma revolução às avessas? Não senhor!
     -Isso que está aí, é uma linguagem clássica?
     -É uma linguagem da Internet, uma linguagem cifrada, é a velocidade... – respondeu-lhe reticente.
     -Onde já se viu “kkkkkk...”, “rsrsrsrsrsrs...”, “kd” “fwd”, “hahahahaha....” e outras frases cifradas, uma linguagem convencional?
     -Não se surpreenda se daqui alguns dias... – foi interrompido por Tom Zé:
     -Deixe de maluquice, homem! – deu-lhe às costas e foi embora.
Manduca está acostumado com o temperamento impulsivo do colega, quando lhe faltam argumentos, sobram-lhe grosserias.
     Tom Zé é mais estudioso, mas não tem a mesma desenvoltura de pensamento e o raciocínio rápido e conciso do seu colega de turma, não obstante Manduca não ser um roedor de livros, assimila os assuntos com facilidade, além de ter uma percepção prática do mundo e da vida. Para ele, a linguagem não pode ser engessada, censurada o tempo todo, todo o tempo, por conta de afetados intelectuais. O mais importante da linguagem é a comunicação, não importam os erros de concordância, os erros ortográficos, os erros de acentuação se a idéia e a proposição chegam ao interlocutor, se o sujeito encontra um receptor, a comunicação foi efetivada.
     Tom Zé não se tocou com o último papo que teve com Manduca, quando a oportunidade surgia, lá estava com a língua afiada e a boca aberta para corrigir o lapso ou a ignorância vernácula:
     -João não se diz: “dez real”, mas dez reais!
     -D. Maria, o verbo “ser” é no plural e o sujeito é “nós”! – a velha rodou a baiana:
     -Joven, eu não esfrerguei a bunda no banco da iscola, inhô intendeu?... – às vezes sua correção era doentia e descabida.
     O auditório estava cheio. Um orador tinha sido convidado pelos estudantes de um Seminário Direito para falar sobre “Economia e Legislação”. Tom Zé e Manduca sugavam cada palavra e cada exemplo do orador. Manduca recolhido num canto, escutava e fazia suas anotações; Tom Zé, além de escutar e anotar, dentre os estudantes, era quem mais aparteava o palestrante, às vezes para concordar, doutras vezes, para discordar.
     O Dr. André foi incompreendido quando disse que o Exército é uma empresa (esclareceu-se depois), mas sua fala passaria despercebida se o chato do Tom Zé não o tivesse aparteado antes mesmo que completasse sua proposição:
     -O Exército é uma instituição militar!
     -Eu sei! Porém, falei do ponto de vista organizacional. O Exército possui departamentos, tarefas, receitas, despesas, um corpo jurídico, comandantes e subcomandantes e um comandante supremo: o presidente da República! - fez uma pausa e continuou: - não é uma empresa com fins lucrativos, com ações no mercado, com preços de produto ou de prestação de serviço. Os senhores entenderam? – um raquítico jovem, levantou-se e como se falasse em nome da turma:
     -Professor, entendemos, sua comparação procede – solicitou vênia ao palestrante e voltando-se para Tom Zé:      - Qual é o maior vocábulo da língua portuguesa, doutor sabe tudo? – por essa ninguém esperava.
     -Cultura inútil!
     -Também acho. Como são inúteis os seus apartes, os seus comentários, o senhor irrita a nossa paciência, é lamentável sua conduta chata, falta-lhe educação, sobra-lhe arrogância, sobra-lhe afetação e sobra-lhe esnobismo! – todos o aplaudiram de pé.
     Tom Zé não respondeu ao jovem nem poderia, ficou isolado o restante do seminário, palestrantes sucederam ao Dr. André, por um acordo tácito, o jovem que lhe disse umas verdades, foi eleito representante dos alunos do curso de Direito, sem voto e sem aclamação.
     Sábio, é o homem que tem consciência que pouco sabe, mas se dispõe aprender; sabido, é o homem que não tem essa consciência.

"A grandeza de uma profissão é talvez, antes de tudo, unir os homens: não há senão um verdadeiro luxo e esse é o das relações humanas." [Antoine de Saint-Exupéry]

Autor: Rilvan Batista de Santana
Licença: Creative Commons
Membro da Academia de Letras de Itabuna - ALITA
Imagem: Google
Rilvan Santana
Enviado por Rilvan Santana em 15/08/2012
Alterado em 01/03/2024


Comentários


Imagem de cabeçalho: Sergiu Bacioiu/flickr