Textos


O velho e o rio

O velho e o rio
R.Santana



I

Era um velho de compleição forte e alto. Moreno trigueiro, que os seus sessenta e tantos anos de vida, mais na fazenda do que na cidade, tinham-no deixado moreno escuro. Tinha por hábito ficar o dia todo dentro d´água quando estava na fazenda. Quando moleque, seus pais faziam-no vestir a pulso, a contragosto, uma camisa comprida que lhe cobria o calção e parte das coxas para lhe proteger do sol. Rapaz, morto os pais, sem irmãos, sem tutor, de nariz empinado, sem conta a prestar a parente ou aderente, fazendeiro por acidente, passava o tempo todo pescando e usava como vestimenta um folgado calção. Quando o sol estava muito forte, saia da água e se estirava embaixo da primeira árvore frondosa que encontrava à margem do rio e dormia o sono dos justos, assim envelheceu...
II
Preservara a propriedade da fazenda Bom Sossego, mista de cacau e gado, no município de Itapé, cidade baiana, às margens do rio Salgado-Colônia e algumas casas de aluguel na cidade de Itabuna e uma casa na praia dos milionários na cidade de Ilhéus. Há mais de 30 anos tinha herdado essa pequena fortuna. Não tinha se tornado mais rico mas não tinha se tornado menos rico. Tinha tido o mérito de conservar e zelar pelos bens que os seus pais lhe deixara, até um Jeep Willys, automóvel usado pela maioria dos fazendeiros, apropriado para romper veredas e estradas de chão, xodó do seu pai, estava em condições de uso, trancado numa garagem. Quando o velho morreu, Lucas Camões de Sá pulverizou o carro de óleo e graxa, cobriu-o com uma grande lona e guardou-o na garagem da fazenda.
III
“Professor Lucas”(todos chamavam-no assim), não era professor. Tinha feito o curso ginasial em Itabuna, no ginásio Divina Comédia, escola famosa pela organização, cobrança pedagógica de sua direção e competência dos seus mestres e concluído o curso “científico” em Salvador. Não quis ser doutor. Os pais ainda vivos, rogou-lhes por uma viagem aos países europeus, em especial, França e Alemanha, onde morou e trabalhou mais de 5 anos só retornando ao seu país, quando o seu pai estava à beira da morte e necessitava de sua presença para cuidar dos negócios e da sua velha mãe.
Voltou mais simples do que quando tinha saído e afora os fumos intelectuais adquiridos lá fora, era o mesmo Lucas que muita gente vira crescer, montando a cavalo e tangendo as poucas cabeças de gado para o curral que o velho criava para o leite da fazenda. Porém, voltou mais maduro e introspectivo. Ouvia mais do que falava, ultimamente, depois que a mãe morreu, tinha fincado os pés na terra, de lá saía se urgia uma necessidade intransferível que não pudesse ser delegada a um empregado, quando sua presença era reclamada.
IV
. Meus pais eram seus vizinhos de fazenda. As nossas terras não representavam um terço das dele. Quando o conheci ele já era um senhor sexagenário de cabelos grisalhos, mas exprimia uma vitalidade e uma jovialidade de um homem mais novo. Eu era um adolescente. Pela proximidade das nossas terras e pelo fato do professor Lucas ser uma referência intelectual naquela região de gente simples, fui me chegando e não muito tempo depois era seu amigo e cúmplice de suas estripulias no manejo do gado, na pescaria e nos banhos de rio. Mesmo mais novo meio século, não tinha a força e o fôlego para acompanhá-lo nas lides diárias da fazenda.
De todas as atividades e ações empreendidas pelo professor Lucas, me deleitava de prazer com as pescarias e os banhos no rio Salgado. Lá na beira do rio, tínhamos tempo para discutir os mais variados assuntos, sem afetação e sem esnobismo. Embora fosse um homem lido e viajado, explicava-me as coisas com clareza e simplicidade. Não me lembro de nenhum momento que tenha perdido as estribeiras ou quisesse mostrar-se superior intelectualmente ou culturalmente aos demais.


V

Janeiro de 1981, domingo de madrugada, céu sem chuva e muita neblina, era sinal de sol escaldante ao longo do dia. Embora já tivéssemos acertado a viagem no dia anterior, o professor Lucas risca com seu jipe lá em casa mais cedo do que o combinado, chamando-me para pescaria. Não estava sozinho, dois camaradas estavam sentados nos bancos detrás. Meus pais ainda esboçaram uma certa resistência deixar-me ir ao passeio, alegando que eu não sabia nadar, foi necessário que o professor Lucas intercedesse em nome da velha amizade familiar:
-Não se preocupem, eu também não sou bom nadador. Ficaremos em lugares de águas rasas. João e Armando (apontou-os), são pescadores profissionais, qualquer incidente, eles estarão apostos. – foi o bastante para que os meus pais me liberassem e eu me aboletasse no banco da frente do jipe ao lado do professor.
Embora levássemos uma meia hora da minha casa até próximo do lugar onde íamos acampar em decorrência do péssimo estado de conservação da estrada e tivéssemos de deixar o carro e fôssemos a pé uns 500 m até à beira do rio Salgado, o esforço tinha valido à pena. O lugar era paradisíaco. A mata se estendia, praticamente, até a margem do rio, com árvores centenárias e copas enormes de sombreamento perene.
Colocamos os nossos apetrechos em cima de uma comprida pedra à beira d´ água, que consistia uma verdadeira plataforma feita pela natureza, enquanto os camaradas se distanciavam para o meio do rio com uma canoa. Eu e o professor Lucas sentamos na pedra e lançamos os nossos anzóis.


VI



Professor Lucas tinha levado uma caixa de isopor com gelo e umas seis cervejas que ao meio dia, o sol a pino, começou bebericar com os demais companheiros de passeio. Para mim, ele tinha levado uns dois ou três refrigerantes que foram consumidos depois dos banhos de rio e almoço.
Quando terminamos de comer a farofa, nos sentamos embaixo de uma jaqueira, que parecia ser ponto preferido doutras pessoas ociosas que por ali passavam, pois ao pé do seu tronco, o capim apresentava-se rasteiro e limpo num raio de 4 ou 5 metros, para jogar conversa fora.
Os camaradas bebiam mais do que falavam, talvez inibidos pela fama intelectual do senhor Lucas, tido e havido como homem de letras e do imberbe estudante ginasial que naquela época e naquele lugar era um fato raro. Porém, quando a conversa começou esquentar e a bebida tinha feito sua função natural, pouco e pouco, eles começaram se soltar, perguntando e emitindo os seus pontos de vista. Isto nos deixou mais confortável, não queríamos ser tomados como pernósticos ou metidos à besta em nossas digressões intelectuais.
Por isso, tomei a iniciativa em nome do meu professor, não queria assumir na minha idade, preocupações comuns às pessoas adultas e ser rotulado de precoce:

-Professor, na minha escola, a professora de Ensino Religioso, acha o casamento uma união indissolúvel; outro professor, uma instituição falida, qual é sua opinião? – ele parou como se estivesse pensando...
-Gugu, eu não posso opinar sobre o casamento, nem devo, sou um solteiro por opção há sessenta e três anos e alguns meses, ah, ah, ah!... – deu uma risada debochada que me deixou desconsertado e arrependido por tê-lo provocado.
-Desculpe-me professor. Pensei que tivesse uma opinião formada sobre o assunto! – falei um pouco enfezado.
-Calma rapaz, eu respondi-lhe que não tenho uma opinião particular, porém, não me custa nada, junto com você e os demais amigos aqui, fazermos uma análise do casamento com todas suas nuances. – contemporizou o professor.
-Professor, Maria é a minha terceira mulher. Comigo não tem isso, não deu certo, arrumo a minha mala e dou um tchau!... – foi o testemunho de vida de João, o mais novo deles.
-Gugu, o casamento não é uma instituição falida. O casamento é uma necessidade social e emocional. O homem não nasceu para viver sozinho. A mulher além de procriar, ser a matriz genética, a mãe, é o lado esquerdo do homem, o lado da emoção, é uma simbiose perfeita, o homem e a mulher se completam. Por isto, nunca será uma instituição falida, não significa, entretanto, que seja indissolúvel, novos modelos de casamento, de convivência, de relacionamento, surgirão em decorrência das transformações sociais e econômicas. – Não estava satisfeito com a resposta do professor Lucas. Não tinha ficado claro, o final de sua fala, principalmente, os “novos modelos de casamento”, por isto, tornei provocá-lo:
-Professor não entendi de sua fala: “os novos modelos de casamento”, significa mudança no modelo de família? – perguntei.
-O casamento como uma união civil, religiosa, e a família patriarcal, na essência são perenes, todavia, quanto à forma, haverá transformações. A ascensão econômica e profissional da mulher, a educação e o aperfeiçoamento das leis, contribuirão para casamentos menos atrelados, com domicílios diferentes, de menos dependência econômica, mais vínculos afetivos duradouros, filhos menos dependentes e mais conscientes do papel do pai e da mãe. – concluiu o professor Lucas.
-Professor, com papéis tão independentes, os casais não se tornariam mais promíscuos, de princípios morais mais vulneráveis? – questionei.
-Meu rapazola, o sexo é uma necessidade animal. A paixão, o sentimento de posse, o egoísmo e o sexo não são decisivos para fidelidade conjugal, os deveres e as obrigações. Só o amor, sentimento da alma, produz consciência moral. O casamento por amor é uma rocha que as intempéries do tempo, não destrói. – finalizou.
Os camaradas que nos acompanhavam, deixaram o local sorrateiramente. Embora não desejássemos, o nosso papo estava descambando para chatice com conjecturas intelectuais. Por isto, propus ao professor que voltássemos para beira do rio, que ele continuasse pescando enquanto eu voltaria para dentro d´água:
-Professor, os seus amigos ficaram entediados com a nosso papo e nos deixaram quase às escondidas, é melhor que voltemos ao rio e á pescaria!... – disse.-lhe.
-Gugu, a pessoa aprende quando a coisa tem significado. Vimos o que pensa João em relação ao casamento. Sua experiência de vida lhe ensinou que casamento é amigação, é amásio, é amancebo. Ele é muito pobre, não teve educação e suas necessidades têm exigências mínimas, satisfeitas suas necessidades imediatas, primárias, tudo vai bem, o resto é de somenos importância, é luxo, é invenção social, não existe em sua lógica de vida simples que tem como aspiração maior: viver. Essa realidade é comum para Armando e João. – contra-argumentei:
-A educação é a saída professor!
-Concordo, meu jovem Gugu!...




VII


João e Armando estavam com dois samburás cheios de pequenos camarões. O lastro da canoa também tinha boa quantidade de traíras, tilápias, pacus, carpas e lambaris. João ainda tinha fisgado uns dois ou três quilos de acari em um poço profundo de águas turvas e de muitas locas de pedra. O professor não tinha pescado nada, soube depois que ele devolvia ao rio toda vez que pescava um peixe. Armando ainda troçou:
-Professor Lucas é rico, compra o peixe e diz aos amigos que pescou!... – Era uma brincadeira de Armando, professor Lucas usava como apetrechos, somente, vara e anzol, quando pegava um peixe, devolvia ao rio. A pesca pra ele era uma terapia e um passatempo. Além da pesca não representar uma fonte de sobrevivência para si, era a favor da vida, da simples até a mais complexa, propositadamente, abstinha-se de ceifar a vida de qualquer ser.
-Professor, qual a diferença que há entre não matar o peixe e devolvê-lo ferido? – perguntei.
-Acho que a vida é um dádiva do Criador. O homem é o único animal que tem consciência da morte, os demais animais possuem apenas o instinto de sobrevivência.
-Mas não é judiação devolver o peixe com ferimento do anzol ao rio se o senhor é a favor da vida? – voltei à pergunta.
-Devolvo-o ferido não morto. Se a causa do ferimento ficar registrada em sua memória, ele não será fisgado doutras vezes por um outro anzol!... - brincou.
-Não existe sentido!...
-Gugu, a vida não tem muito sentido. Pescando ou fazendo outra coisa, estou dando tempo ao tempo. O tempo é o senhor da razão, pois tudo soluciona, porém, ele é implacável. Nasci nessas terras, percorri grande parte do mundo, hoje, idoso, sinto-me jovem de coração mas os anos e o corpo dizem que estou velho. O tempo é como este rio, suas águas descem em sentido ao mar e não mais retornam, um filósofo grego teve razão em dizer que “não banhamos duas vezes no mesmo rio”. As perguntas seculares: “quem sou eu?”; “de onde vim?” e “para onde vou?”, jamais serão respondidas. Quando me pergunto: “quem sou eu?”, obtenho respostas psíquicas, físicas; as metafísicas, para essência do eu, do ser, não tenho respostas. A mesma coisa ocorre quando formulo as outras duas perguntas. Conheço a história do meu nascimento, todavia, não sei de onde vim nem para onde... – por favor professor (eu o interrompi), as religiões têm suas versões!...
-Se cada religião tem uma versão, só uma versão é verdadeira ou nenhuma. Lembre-se que as religiões estão embasadas na palavra, na fé. Muitos dogmas antigos e preceitos não têm nenhum significado nos dias atuais. Por exemplo, ou você acredita na história da maçã, da criação ou na reencarnação. Seria uma heresia pra qualquer prosélito dessas teorias religiosas, admitir a evolução na origem dos seres vivos. A religião é necessária para estabelecer o equilíbrio existencial e esperança de vida eter... – Professor (tornei interromper-lhe), desculpe-me, do jeito que fala, a vida do ser humano e de outro animal qualquer têm o mesmo significado. Acho sua fala uma digressão intelectual, um recurso de oratória, então, quê fazer da vida? – perguntei-lhe.
-Viver. Não usei de recurso retórico. Não quis lhe impressionar nem tergiversar o meu pensamento, quis lhe dizer que penso dessa maneira. Posso estar errado, mas é assim que penso. Quando os meus pais morreram, muitos pensaram que eu ia dilapidar o patrimônio de herança porque estava algum tempo perambulando e trabalhando no estrangeiro. Não o fiz, por respeito a mim e aos meus pais. Não dilapidei, também, não acrescentei mais patrimônio, preservei o patrimônio que herdei para na velhice não ser um peso para sociedade e para o governo. Hoje, tenho a velhice garantida, não será necessário estender a mão à caridade pública. Não dilapidei mas vivi bem todo esse tempo, fazendo do trabalho um meio de vida não de morte.



VIII


A minha amizade com o professor Lucas durou até sua morte, 3 anos atrás, velhinho. Morreu lúcido, com as mesmas convicções que me passou às margens do rio Salgado.
Fui visitá-lo várias vezes e mais amiúde prestes dele morrer. Fui surpreendido na antevéspera da sua morte. Ele com a voz um pouco cansada, pegou em meu braço e perguntou-me
-Gugu, lembra-se das nossas conversas lá no Salgado?
-Professor foram tantas... qual em especial? – lembrava-me, queria testá-lo.
-Sobre o sentido da vida!...
-Ah, lembro-me de cada palavra. Noutras palavras, que a vida é para ser vivida, que não perscrutássemos seus mistérios. Não foi? – ele ficou olhando-me com ar paternal...
-Você é o filho que não tive. Nunca quis tê-los. Os filhos geralmente, são cópias apagadas dos pais. Há um dito que o filho só puxa ao pai quando é cego, aí, ele puxa o pai pelo braço!... – brincou.
-Considero-lhe como um pai. Se não fosse esnobação, roubaria a frase de Alexandre sobre Aristóteles e o seu pai: “...se um me deu a vida; o outro, me deu a arte de viver”. Aprendi e continuo aprendendo com o senhor!... – os olhos dele começaram marejar – Quê é isso? Vamos mudar de assunto, o clima aqui está de despedida, de velório!... – brinquei.
-Olhe Gugu, estou chegando ao fim (quis protestar, mas ele não deixou), por isto, estou deixando os meus negócios organizados. Como não tive filhos, você foi contemplado com aquilo que mais gosto: a fazenda. Os outros imóveis e dinheiro irão para instituições públicas sem fins lucrativos. Gerencie a fazenda (para ele, nós somos gerentes e não donos de nada), até os finais dos seus dias. Aquilo é uma pontinha do paraíso. Se tiver de vender a fazenda, venda-a para quem gosta de terra, não a venda para especulador de caráter suspeito. – pegou-me de surpresa, estupefato, perguntei-lhe:
-E agora, amigo?...
-Viva!...:

Autor: Rilvan Batista de Santana
Academia de letras de Itabuna - ALITA
 
Rilvan Santana
Enviado por Rilvan Santana em 14/08/2012


Comentários


Imagem de cabeçalho: Sergiu Bacioiu/flickr