Judite
Judite
R. Santana
I
Quando a conheci nos últimos anos da década de 70, ela já era uma mulher madura, deveria ter uns 45 anos de idade. Altura mediana, forte sem ser gorda, de pele trigueira, cútis lisa, sem marcas de expressão, olhos esverdeados, um sorriso solto e uma predisposição inata de servir quem quer que lhe procurasse, não importava o dia e a hora. Ninguém do Jardim Primavera, jamais lhe ouvira dizer: - não! – parecia que seu tempo era superior ao tempo dos demais mortais. Ninguém nunca lhe vira doente ou com queixumes.
Os adultos e os mais velhos chamavam-na de “dona Judite”, a molecada de “tia Judite”, os mais íntimos, de “mãe Judite”. Todos respeitavam-na. Não tinha filhos legítimos mas era a mãe legitimada daquela meninada circunvizinha. Às vezes, sua casa estava alegre, em polvorosa, com vários moleques, comendo e brincando. Quando havia necessidade, ralhava com dureza de mãe e coração de avó:
-Pedrinho meu filho, você vai quebrar o espelho com essa bola! – era sua bronca
Pouco se sabia de sua origem. Sabia-se que tinha ficado viúva ainda nova, de um funcionário graduado do governo federal e jamais quis contrair novas núpcias. Não foram poucos os pretendentes que deram com a cara na porta, quando não sabiam distinguir o interesse homem e mulher duma amizade.
II
Falava-se que era filha de uma rica e tradicional família do Rio Grande do Sul. Fazia 10 anos que se mudara para cidade de Itabuna, interior da Bahia. Quando chegou do Sul foi morar com o marido (recém aposentado), no município de Camacan, na rua de Mascote, centro da cidade, numa confortável e aprazível casa. Tinham sido atraídos pela fama do cacau. Aposentado, o marido dela, o Sr. Júlio Medeiros, tinha comprado uma propriedade rural nesse município, com a intenção de investir os recursos economizados na vida pública e não ficar ocioso. Mas, não afeito às carraspanas do campo, morreu dois anos depois de febre tifóide. Sozinha, vendeu os bens e mudou-se para Itabuna.
No final de cada ano letivo, ficava com a casa cheia de sobrinhos e sobrinhas que costumeiramente, vinham passar as férias na casa da tia “baiana”, apelido carinhoso por ter adotado a Bahia e não o Rio Grande do Sul, para viver e morrer. Quando cutucada, justificava:
-Quem bebe a água dessa terra, fica presa por um cordão umbilical invisível. Vocês depois de formados mudarão pra aqui de mala e cuia. Duvidam? – os sobrinhos ficavam calados.
III
Hoje, mais de três décadas depois, acho que dona Judite era uma santa. Não sou santófilo - não sei se existe este termo, se não existe, estou adicionando à língua, afinal, isso não é apanágio só de Guimarães Rosa, os pobres mortais também têm esse direito -, ou seja, não acredito que alguém beatificado e canonizado, torne-se santo a oferecer graças e milagres, mas acredito numa vida santa e testifico-lhe, depois de tanto tempo, que essa mulher teve uma vida santa.
Era católica sem ser piegas. Ia à igreja quase todos os dias, mas sem farisaísmo, ia porque gostava de viver em oração, não para demonstrar ao vizinho da frente ou de lado sua religiosidade. Ia como se estivesse assegurando os ensinamentos proféticos que a fé sem a obra é inócua.
Judite tinha uma missão. Não a missão de sua xará judia que decapitou a cabeça de Holofernes para libertar Betúlia e por extensão seus irmãos de raça. Mas, a nossa Judite teve a missão de matar a fome dos necessitados, minorar o sofrimento dos doentes, enxugar as lágrimas dos desesperados, levar conforto ao idoso, sorriso à criança, companhia ao solitário e ajudar alguém encontrar o seu caminho, usando a arma do amor.
Tinha uma vida discreta, sem ostentação, quando alguém lhe questionou por que não fundava uma instituição para atender maior quantidade de pessoas, respondeu:
-Não sei lidar com essas coisas, além disso teria que conviver com políticos que não comungam com os mesmo ideais e que não são solidários com os menos favorecidos. Não tenho vocação política. – o interlocutor insistiu:
-Dona Judite, é ficar em cima do muro e apoiar o vitorioso.
-Meu filho, não é preciso. Deus dá o frio conforme o cobertor. A minha solidariedade é do tamanho do meu merecimento, se não faço mais pelo meu semelhante é que o meu merecimento não condiz. Alguns abnegados usam esse disfarce político em nome da caridade, porém, falta-me jeito, não tenho coragem...
IV
O dia despertou normal e alegre. Cedo ainda o sol já penetrava nas frestas das janelas e das portas da maioria daquelas casas populares do Jardim Primavera. Judite não esquentava cama, levantava-se todos os dias mais cedo do que suas duas auxiliares da labuta doméstica. Não tinha marido e nem filhos para cuidar. Podia se dar ao desfrute de acordar com sol a pino, mas por mais que desejasse gozar desse ócio não conseguia. E, se o hábito é uma segunda natureza, Judite, chovesse ou fizesse sol, às 5 h, já estava em pé no trabalho da casa.
Pela manhã, Judite socorreu uma vizinha, que deixou o seu filho mais novo aos seus cuidados, enquanto ia ao hospital cuidar da saúde do mais velho. Era comum suas vizinhas, principalmente as que tinham filhos menores, socorrerem-se dela. Doida por criança, sublimava suas frustrações por não tê-los tido, emprestando seu colo aos filhos daquelas mulheres que precisavam atender suas eventuais necessidades. Noutro dia:
-Comadre Judite, você fica com Marquinhos enquanto irei participar de uma entrevista de emprego da CACAU & CHOCOLATE S.A.?
-Comadre Maria, não precisa pedir. Se eu não estiver, deixe-o com as meninas, quantas vezes forem necessárias, já lhe disse! – ela não tinha problema, tinha solução.
O dia já entrava no crepúsculo vespertino, quando alguém toca a campainha de sua casa, gritando socorro:
-Dona Judite!!!... - ela saiu dos fundos reclamando:
-O quê foi Paulinho? Quer me matar de susto, seu diabinho!...
-Mamãe mandou chamar a senhora. A casa de dona Flor está fumaça pura, parece que estar pegando fogo!... – fez o moleque esperar somente o tempo de vestir uma calça e trocar as sandálias por um sapato fechado – Vamos Paulinho! – saíram em debandada.
Havia mais fumaça do que fogo. Alguém já tinha ligado para o Corpo de Bombeiro. A casa ainda continuava fechada e o pessoal atônito, receoso em invadi-la. Parecia que não havia ninguém no imóvel, ledo engano... Quando o fogo começou colocar a língua de fora, eis que surgem dona Judite e Paulinho. Ele, com um palmo de língua do lado de fora como um cachorro cansado; ela, esbaforida, cansada, porém, num relance de olhos, juntou as energias latentes que tinha e começou dar voz de comando:
-Vamos amigos!!! – e, num gesto felino pulou o muro.
O exemplo fica. Os indecisos começaram também, pular o muro da frente, o que separava a casa da rua e sem muita dificuldade, adentraram no seu interior, seguindo os passos, o exemplo e a voz de comando de dona Judite.
Porta e portão escancarados, sem muita organização, mas com excesso de solidariedade, latas e baldes de água foram jogados no fogo que teimava em se arrefecer, em certos cômodos, apresentava-se com mais entusiasmo. Porém a turba não deu moleza, minutos depois, que pareceram infinitos, o mal estava debelado. A fumaça é que ainda resistia deixar o ambiente.
Judite conhecia a casa de olhos vendados, não foi difícil descobrir donde vinham um choro desesperado e uns gritos de socorro e, com ajuda de dois ou três voluntários, arrombaram a porta de um dos quartos dos fundos da casa. Ainda não havia fogo, porém, a fumaça pouco e pouco ia tomando conta do recinto e por mais desesperada que fosse a situação, teve equilíbrio e discernimento para orientar os demais:
-Juca, leve o menino maior! Marly, tome essa criança, deixe a outra comigo!... – assim, num átimo de tempo, as tarefas foram distribuídas.
Na rua, as palmas e as vaias se confundiam, é que a chegada atrasada dos bombeiros coincidiu com a aparição na porta de Judite, Juca e Marly, cada um trazendo nos braços uma criança. Provocou no povo um sentimento simultâneo de alegria e revolta. Júbilo pela salvação das crianças e revolta dos moradores pela demora dos soldados do fogo, homens acostumados enfrentar e dominar grandes sinistros, tão necessários nesses infortúnios.
Como profissionais zelosos, fizeram ouvidos de mercador. Inundaram a casa de água, eliminando os possíveis focos de fogo. A demora foi explicada: estavam em serviço, tentando evitar um maluco se jogar de um edifício por ter perdido sua mulher. E, como só havia uma viatura disponível no quartel, em circunstâncias sinistras simultâneas, priorizavam atender os casos começados. Em seguida, com a chegada de uma ambulância, socorreram às pessoas que mais fumaça tinham inalado e estavam com a respiração comprometida, as mais sofridas eram uma criança de colo e dona Judite.
V
The day after, os fatos do sinistro foram esclarecidos: os donos da casa tinham ido ao centro da cidade às 14 h. Ele, para atender o chamamento duma empresa distribuidora de produtos alimentícios para um teste de motorista; ela, comprar um remédio de uso contínuo na Farmácia do Povo. Como era costume, em viagens curtas e para protegê-los, deixavam seus filhos com brinquedos, trancados no quarto dos fundos enquanto voltavam. Porém, naquele dia, um curto circuito na velha instalação, tinha sido a causa daquela pirotecnia que com ajuda de Deus e do povo, especialmente dona Judite, seus filhos não tinham morrido sufocados de fumaça ou carbonizados.
Judite não tivera a mesma sorte, com um histórico de doenças respiratórias crônicas e ter inalado muita fumaça, morreu um dia depois de hospitalizada, assistida por alguns parentes e muitos amigos.
VI
A moribunda, entubada, com a respiração ofegante, ainda lúcida para perceber que na vidraça do Centro de Terapia Intensiva, muitos rostos se sucediam e muitos gestos eram feitos com desejos de sua cura. Não podia falar por causa dos aparelhos mas de quando em vez acenava com os dedos abertos em V de vitória. Não a sua vitória, porém, a vitória de ter salvo a vida de três criaturinhas de Deus.
VII
O pátio e os corredores do hospital Sta. Cruz estavam lotados de gente apreensiva com notícias freqüentes do agravamento clínico de Judite, quando um preposto veio anunciar que ela teria tido uma parada cardíaca irreversível em decorrência da agravante insuficiência respiratória:
-Senhores, a paciente Judite Santos e Medeiros, teve uma parada cardiorespiratória e entrou em óbito. A direção solicita que os parentes compareçam à secretaria. Nossas condolências e boa noite!
VIII
O cortejo ia subindo a ladeira em direção ao cemitério com centenas de pessoas orando e cantando cânticos de despedida quando alguém que não era do meu convívio se aproxima e pergunta-me:
-Quem morreu?
-Um anjo!... – respondi-lhe abruptamente.
-Anjos não morrem, senhor! – respondeu-me.
-Tu tens razão garoto, anjos não morrem!...
Autor: Rilvan Batista de Santana
Gênero: conto