O pesadelo
R. Santana
O suor escorria-lhe pelo corpo... A coberta e o travesseiro repuxados e rasgados pelos movimentos bruscos dos pés e mãos de Marcos que na ânsia de se livrar do Dr. G. mexia-se e remexia-se sem parar, enquanto o câncer roia-lhe as entranhas e a alma, mais a alma do que as entranhas. O médico lhe aparecia cuspindo fogo com bocarra assustadora, falando, gritando e deixando-lhe maluco!...
Fazia tempo que Marcos pouco dormia ou nada dormia desde que Dr. G. lhe comunicara o diagnóstico dos exames. Não entendia os desígnios de Deus, sempre lhe tinha sido amigo e fiel, procurou-Lhe no amor e não na dor. Agora, estava perdido, decerto, Deus lhe abandonara.
Não tinha medo da morte, mas se assustava com o sofrimento da doença, com sua nocividade, com sua maneira silenciosa e vil como que mina o ânimo e o corpo com os seus tentáculos de caranguejo, deixando o sujeito sem auto-estima, desnorteado, igual ao lutador de boxe que toma de cheio um soco na fronte e não deseja beijar a lona, mas lhe escurecem as cordas e os cantos do ringue...
Dr. G. cuspia palavras de fogo: “Não existe operação, o seu câncer é sistêmico, você vai se estrebuchar em sangue nesta cama”. Marcos com respiração sôfrega não compreendia: “Hein... hein... hein!?”, Dr. G. mais enfurecido gritava: “Tu vais morrer se desmanchando em sangue!!!”, o mundo caía-lhe sobre a cabeça.
Quando ele soube que tinha câncer, revoltou-se com Deus, não aceitava a mortal doença e atribuía ao Criador sua má sorte, sua desdita, seu infortúnio, que estava sendo castigado, mas não iria Lhe pedir piedade, clemência, nada fizera de mal durante sua vida para que merecesse esse triste fim, renegava o tempo que dobrara os joelhos para Lhe adorar, não O consideraria mais, seu Pai, mas um padrasto perverso, desalmado, pouco se lixando para os seus filhos de si não gerados.
Era um homem de fé, comungava com Jesus Cristo quando disse: “Será que alguém de vocês que é pai, se o filho lhe pede um peixe, em lugar do peixe lhe dá uma cobra? Ou ainda: se pede um ovo, será que vai lhe dar um escorpião?” (Lucas 11, 11-12). Portanto, não era justo Deus colocar sobre si aquele pesado fardo, aliás, nunca tinha entendido a crucificação do Seu filho unigênito para redimir os nossos pecados nem essa história de “pecado original” - a fé não lhe embotava a razão!...
A doença lhe quebrara o ânimo, minou sua fé, destruiu sua autoconfiança, porém, deu a Marcos a certeza que o homem é necessário e contingencial, um ser limitado, o homem é suas circunstâncias, as coisas ocorrem por conta das possibilidades contingenciais, isto é, não existe castigo, o sofrimento não é o cutelo usado por Deus para castigar o homem, o mal está inserido no mundo das possibilidades, Deus é a única possibilidade necessária e essencial que existe por si, idéia lógica que subsiste por si, conceito puro necessário à unidade da razão de acordo Kant. Portanto, a dor, o mal e os infortúnios estão inseridos no mundo das possibilidades e não no desejo de Deus, em vão culpá-Lo ou a si.
A felicidade é um estado de espírito, o homem não nasce para ser feliz, mas para ter felicidade, ou seja, o homem não é feliz, o homem está feliz, a felicidade lhe é tirada toda vez que há um desequilíbrio no seu mundo de possibilidades contingenciais e reais que independem de sua vontade.
Marcos mais ofegante, voz grunhida, suor espesso, esforçava-se cada vez mais para responder às provocações do Dr. G. que lhe aparecia, agora, travestido de homem-bruxa, voando em círculos, escanchado sobre uma vassoura, cuspindo palavras de fogo e olhos incandescentes que lhe emprestavam as feições do tinhoso: “O câncer vai lhe comer o corpo infeliz!!!”, respondia ao médico na bucha: “Tu és um miserável, agente da morte! Tu és um derrotado, tu vês, impotente, a morte ceifar-lhe o trabalho de anos!... Tu não tens desgosto do nada que tu és diante do infortúnio? Tu não és Deus, tu quanto eu, quanto ele, não passamos de pó!...”
A tensão lhe seria demais, o seu coração teria explodido se mecanismos de defesa do seu corpo não reagissem e Marcos não se soerguesse do pesadelo num sobressalto. Sentado na cama, ainda ofegante, assustado, porém, de alma renascida, curvou-se depois, de joelhos no chão, chorou e orou, orou e chorou, chorou e orou...
Autor: Rilvan Batista de Santana
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Membro da Academia de Letras de Itabuna
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