Textos


Conheci um imortal
R. Santana

     Não o conhecia pessoalmente, eu o conheci no dia 19 de abril deste ano, conhecia-o “en passant” pela leitura aqui e acolá de seus textos literários ou através de ouvir dizer dos amigos e dos menos amigos, às vezes, por curiosidade intelectual, recorria aos seus textos para compará-los aos de Jorge Amado, Adonias Filho, Clodomir Xavier, Telmo Padilha, ou seja, aos meus escritores preferidos da terra do cacau. Mas, conheci anos atrás, nas lides políticas, o seu pai e o seu irmão, porém, faz-se necessário dizer, para ser fiel à verdade, que conheci mais o seu pai do que seu irmão.
     Embora eu goste de poesia, gosto mais da boa prosa. A prosa é mais descritiva e mais acessível a qualquer leitor. A poesia é mais sintética, mais analítica e mais metafórica, poucos mortais entendem a linguagem in tout do grande poeta, tomemos a guisa de exemplo alguns versinhos de dois monstros sagrados da poesia, Bandeira e Drummond:
     “Vou-me embora pra Pasárgada
     Vou-me embora pra Pasárgada
     Aqui eu não sou feliz
     Lá a existência é uma aventura...”

     Ou,
     “No meio do caminho tinha uma pedra
     tinha uma pedra no meio do caminho
     tinha uma pedra
     no meio do caminho tinha uma pedra...”
     Os autores usam uma linguagem figurada para explicar uma crise existencial em que “Pasárgada” é o lugar da boa vida, da felicidade e da oportunidade e a personagem se muda pra lá, enquanto a “pedra” representa o obstáculo do dia a dia, por isto, prefiro a prosa à poesia.
     Foi mais pela prosa do que pela poesia que conheci o escritor de poesias infantis, poeta, contista, cronista, ensaísta e o jornalista Cyro Pereira de Mattos. Sua prosa é leve, solta, narrativa quase coloquial... Sua linguagem é clara, acessível para o culto e o menos culto, o leitor vive os personagens e as circunstâncias de sua prosa e sua poesia naturalmente, diria que o seu estilo se aproxima ao estilo popular de Jorge Amado sem descambar na linguagem chula.
     Cyro de Matos tem orgulho de ter nascido na terra do caxixe, do cacau e da jaca, terra construída por homens aventureiros, homens curtidos pelas intempéries dos sertões da Bahia e de Sergipe, todavia, ele soube sublimar esse regionalismo, numa linguagem moderna e universal.
     No seu livro “O Goleiro Leleta”, Cyro mistura o seu amor pelo futebol com personagens folclóricos e inesquecíveis em quatro lindos causos, onde, no primeiro conto, o escritor dá espaço ao moleque das peladas de várzea. E, poeticamente, despeja suas proezas de jogador artilheiro que numa competição histórica, uma revanche entre o Bahia de Badeco e doutor Viterbo e o Brasil da “rua de cima”.
     A revanche do Bahia, no último domingo daquele ano, no campo da beira rio, com direito a torcida, traves novas e juiz com roupa preta, quase iria para o leito do rio Cachoeira, junto com a bola, se o filho de Augusto Matos e eterno preterido por Badeco, não tivesse condicionado sua entrada no Bahia, e, Badeco na casa do sem jeito, o deixou entrar com sua bola novinha de couro dada pelo pai e fizesse três providenciais gols de olé na defesa, deixando o zagueiro Magarefe a ver navio, depois da festança dos colegas e apupos dos adversários, ele debocha de Badeco que lhe pede pra que continuasse efetivo no seu time:
     - Só se for pra nunca mais sair da ponta-direita!...
     As histórias dos goleiros Galalau e Leleta são exemplos de superação e amor. Galalau um moleque desengonçado, o mais velho do time “Estrelinha da Várzea”, frangueiro no início, que despertava o deboche dos adversários: “Au! Au! Au! Galalau é bom pra mingau!...”, supera sua má condição física e é estigmatizado por belas defesas com uma só mão, além de colocar os outros times no chinelo.
     A história do goleiro Leleta faz jus uma sessão de psicodrama, pois Leleta recebe a notícia de repente que Neco, o seu pai, tinha morrido, num jogo decisivo entre Burburinho do Paraíso e Rio Claro, não obstante Leleta tivesse jogado sob forte carga emocional, fecha o gol e dá a vitória ao time de Burburinho do Paraíso, o seu lugarejo.
     Porém, o contista e poeta Cyro de Matos sai de cena quando ele conta os maus-bocados que Zé Gordinho, o seu amigo de infância, passou por não assistir o jogo do Botafogo de Garrincha, Nilton Santos, Didi e Zagalo com a Seleção Amadora de Itabuna de Santinho, de Florizel, dos irmãos Riela, de Tombinha, de Zé do Carmo e de Abiezer, no velho campo da desportiva, no conto: “O dia em que vi Garrincha jogar”.
     Além da emoção contida que Matos desembucha nesse conto: “... Comecei suar frio e a ficar com a respiração quase presa... Ainda trêmulo, a voz meio engasgada, fiz um esforço e gritei: Garrincha! Garrincha! Garrincha! – ele me acenou, riu e fez com o dedo polegar um sinal indicativo que tudo estava legal...”, ele registra no livro de maneira subjacente que herdou do seu pai o amor pelo futebol: “... O único vício do meu pai estava no futebol, melhor dizendo, a única diversão que ele gostava... Chegava cedo ao estádio, por volta das treze horas, antes mesmo de ser aberto o portão que dava acesso para o local da sombra e da arquibancada”.
     O depoimento de Cyro de Matos sobre o seu pai, reportou-me ao ano de 1973 ou 1974, eu não me lembro bem, embora os fatos sejam verdadeiros, quando rapazinho, conheci o senhor Augusto Matos na campanha de José Oduque à prefeitura de Itabuna. Lembro-me que era um homem moreno, baixo, forte, não sei se baiano, sergipano ou doutro lugar do Nordeste, sei que pelos traços de caboclo não era do Sul nem do Sudeste. Lembro-me que era um homem simples de poucas letras, um jeca da palavra, mas naquela época era tido como grande fazendeiro de cacau e empresário na locação de imóveis, eu recordo-me de ter ouvido José Oduque lamentar sua desdita de locador: “... esse negócio de aluguel de casa é com Augusto Matos”.
     Augusto Matos, naquela época com suas palavras simples, de homem inculto: “... antigamente vocês comia na cuinha, agora, com Zé Oduque vocês vai comer no cuião!”, conseguiu avalizar e alavancar a candidatura de José Oduque e fazê-lo prefeito. O seu exemplo de homem do povo ficou no folclore da política itabunense.
     Hoje, muitos anos depois, foi que conheci pessoalmente o seu filho, o poeta Cyro de Matos, preocupado com a construção de uma academia de letras itabunense, certamente, ele empenhará o seu nome e o seu prestígio de escritor bem sucedido, junto aos outros escritores, na fundação dessa Academia de Letras de Itabuna – ALITA, uma casa que irá zelar pela palavra e pela escrita. Uma casa que irá corrigir as injustiças feitas aos escritores do Sul da Bahia e aos cultores da literatura e da arte.
     Para o jurista Marcos Bandeira: “Cyro só precisa morrer para ser imortal”, para mim, bocó da palavra e da escrita, que nunca viu um imortal de carne e osso, que o mortal não é imortal, regozijo-me por ter conhecido em vida, Cyro de Matos, um imortal!...

Autor: Rilvan Batista de Santana
Licença: Creative Commons
ACADEMIA DE LETRAS DE ITABUNA - ALITA
Imagem: Google


 
Rilvan Santana
Enviado por Rilvan Santana em 18/07/2012
Alterado em 13/03/2024


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