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Eutanásia

Eutanásia
R. Santana

I

Tomamos um susto naquela tarde de fevereiro de 2006, ao entrarmos no quarto 106 do hospital Dr. Caio Martins. Eu e Maria estávamos procurando um colega de longas eras, que tinha tido um acidente vascular encefálico (AVE), vulgarmente, derrame cerebral. Lembro-me que na soleira da porta comentei:
-Maria, o professor Carlos não está neste quarto! – ela, mais ativa e desprendida, entrou no quarto, olhou para os internos e disse:
-Acho que o moço da recepção nos deu o número errado! – conjeturei:
-Ele pode ter tido alta médica... – uma enfermeira passava no momento:
-Moça, por favor, o professor Carlos Botelho já saiu do hospital?
-Não, ele está no 106 (apontou), na primeira cama, logo na entrada! – Maria, ainda sem entender, perguntou-lhe:
-Mas... aquele velho é o professor Carlos Botelho?
-Sim.
Ficamos atônitos, voltamos ao quarto 106 e verificamos amiúde que um dos pacientes do 106 era realmente Carlos Botelho. Ele era um homem que antes da doença, aparentava menos de cinqüenta anos, mas naquele estado, tinha envelhecido uns vinte anos. Os cabelos e a barba encanecidos, as pálpebras caídas, as bochechas e o queixo fino, tipo Noel Rosa, três dedos amputados por causa de uma trombose a posteriori ao acidente vascular cerebral, magérrimo, com a perda de movimento de um dos braços e perda total da fala, usando fraldas, enfim, um homem transformado e modificado em pouco tempo, pela doença e pelo sofrimento.

II

-Alô, alô... gostaria de falar com quem? – do outro lado da linha, uma voz de mulher, não familiar:
-Quero falar com o professor Ricardo, ele está? – ainda não a tinha reconhecido:
-Sou eu, quem gostaria de falar? – estava nervosa:
-É Cal, Ricardo! Não reconheceu a minha voz?... – desculpei-me:
-Você está com a voz de menina, como poderia adivinhar? Depois que você mudou para apartamento novo ficou toda metida (risos), nunca mais deu o ar da graça!...


-Não é nada disso. Tenho que acompanhar o estudo dos filhos, trabalho um turno fora, cuido dos trabalhos de casa e Carlos dá aula nos três turnos em dois colégios, é uma luta!...
-Desembuche Cal, qual a razão do seu nervosismo? – tergiversou, disse coisa com coisa, depois foi ao assunto que a estava incomodando:
-Vocês saíram muito tarde, ontem à noite, do bar Carne na Brasa?
-Vocês quem?
-Você, Carlos, Antônio, Edu... – fui inepto:
-Cal, ontem não fui a nenhum bar e seu marido, têm umas duas semanas que não o encontro! Ouvir um palavrão do outro lado da linha:
-Filho da puta, ele chegou ontem pela manhã, bêbedo e disse-me que estava com você e os demais!... - não podia mais consertar, estava na casa do sem jeito. A emenda poderia ser pior do que o soneto. Ela confiava em mim, não poderia confirmar a mentira de Carlos, mesmo ele sendo um dos meus melhores colegas, apenas, remediei doutra forma:
-Cal, deixa Carlos arejar a cabeça, afinal, ele trabalha de segunda a sábado, senão, ele pode ter um esgotamento nervoso.
-Eu entendo Ricardo, porém, ele não anda bem de saúde, fuma mais do que come e não procura se cuidar. Já marquei médico e exames, ele faz por fazer, mas não segue nenhuma prescrição médica, continua fumando e bebendo.
-Peço-lhe que não faça nenhuma admoestação. Com habilidade e carinho, insista para que ele se cuide, afinal não é criança. Porém, tem gente que não gosta de pressão. Use seu jeitinho feminino...
-Obrigado Ricardo, estava para estourar. Acho que seu conselho pode dar resultado, tchau!...

III

Mais uma visita que me deixava arrasado psicologicamente. Cada dia, agravava o quadro de saúde de Carlos. Seu pé esquerdo estava roxo e infeccioso pelas complicações da trombose e os médicos já tinham esgotados todos os recursos do tratamento e o único recurso seria amputá-lo para não afetar a perna.
Era um quadro deprimente. Mais depressivo e impotente, ficavam seus amigos e familiares. Carlos pouco e pouco ia se tornando um espantalho de gente.
Embora o derrame cerebral tivesse atingido a região da fala (ele não falava, com muito esforço grasnia alguns sons de corvo), ele chorava seu pranto, principalmente, para reclamar a presença da mulher, ou quando chegava um colega querido, que ele o reconhecia mas não podia falar, externar seus sentimentos de alegria e papear.


IV



Quinta-feira, janeiro de 2002, à tarde, Dr. Eugênio Santillo fazia no auditório do Edifício Pedro Américo, uma palestra para os trabalhadores da saúde e da educação da região Sul da Bahia, em Ilhéus, sobre os controversos temas da Bioética e do Biodireito: a eutanásia e suas formas, a distanásia e o suicídio assistido.
Mais de uma hora de palestra, explicando esses assuntos, sob a ótica jurídica e ética. Dr. Santillo encerra seu discurso, externando sua opinião pessoal: “...que o homem não tem direito sobre a vida de terceiros, mas se lhe é dado o livre arbítrio de viver, que lhe dê o livre arbítrio de morrer. Se alguém toma a priori essa decisão, que se acometido de uma doença incurável e sofrida ou mesmo durante o processo de uma enfermidade crônica, os profissionais da saúde e a família têm que eticamente cumprir o último desejo daquele que sofre e quer ter uma morte breve e digna”.
Eu e Carlos tínhamos sido designados pela nossa escola como agentes multiplicadores do evento. Nós teríamos que repassar para os demais colegas, todas as informações e os conhecimentos vistos naquele seminário de “Educação e Saúde I”, ministrados naquela semana de janeiro, por vários especialistas, conforme o assunto. Lembro-me que Carlos ficou impressionado com a palestra de Dr. Eugênio Santillo, não sei se por premonição, presságio, ou pela qualidade intelectual e oratória do palestrante.

-Bicho, tenho o mesmo pensamento desse médico. Se eu tiver uma doença incurável, quero abreviar a minha morte.
-Carlos, é uma decisão difícil para família, notadamente, para os filhos e os pais.
-Bicho, eu não tenho mais pai e nem mãe. Já avisei a Cal, Gustavo e Priscila que não me deixem sofrer. Se eu estiver lúcido, tomarei a iniciativa.
-Hum!... Você está com astral de moribundo. Vamos deixar essa conversa de eutanásia e morte para quando chegar o dia. Pensamento positivo, ave agoureira!...
-Ave agoureira é a puta que te pariu. O meu pai morreu entrevado numa cama em meus braços, sofri com ele. A morte assistida pode ser um conflito de consciência para os parentes próximos e os agentes de saúde, todavia, é a única forma digna de morrer quando o mal é de morte!...
-Você se esqueceu que tem pouco tempo que enterrei uma filha? – ele se arrependeu da verborragia intempestiva –Oh Ricardo, desculpe-me, é que ainda me lembro do sofrimento do meu velho. Mas sua labuta com Paola, deve ter sido mais sofrida. Enterrar filho é mais dolorido porque está na contramão da natureza.

V

- Cal, sei que o momento é impróprio, mas gostaria de lhe falar em particular!... – falei-lhe num momento de dor.

-Fique à vontade Ricardo, você é nosso amigo, Carlos muito lhe estima.
-Lembra-se que há uns quatro anos, eu e Carlos participamos de um seminário em Ilhéus?
-Claro, na época eu fique fula da vida por não ter ido com vocês.
-É... que... naquele seminário, Carlos estava com umas conversas esquisitas...
-Já sei, você quer falar da eutanásia?
-Sim. Carlos também lhe falou?
-Falou e olhe no que deu!
-Por favor, esqueça a nossa conversa. Acho que fui inconveniente tocar nesse assunto neste momento. Ele está sofrendo tanto e, ele me disse naquela época que não queria...
-Por que razão devo esquecer? Comungo com suas preocupações. Carlos também deixou claro para mim e os filhos como gostaria de morrer. Parece-me agora, que estava vaticinando seu fim. Mas, pensa você que irei obedecer-lhe? Não! Não irei obedecer-lhe por motivos de foro pessoal, porque temos uma história juntos, por convicção religiosa, além disso não existe respaldo jurídico e por achar que cada um aqui tem uma missão. Se temos que sofrer, que saibamos sofrer com dignidade. O nosso corpo é uma caixinha de segredo. Quantas vezes a ciência médica já falhou? Enésimas vezes, então, meu caro Ricardo, sempre haverá um luzinha no fim do túnel e a estamos enxergando, mas lhe agradeço pelas preocupações, entendo como um desencargo de sua consciência. Obrigada!...
-Cal, fico feliz por você pensar assim. Nunca fui a favor da eutanásia, temos que esgotar a última gota de esperança. As pessoas que falam em eutanásia, pena de morte, aborto, suicídio assistido e outros métodos de por fim â vida, não têm Deus no coração ou nunca sofreram na pela ou têm uma mente criminosa. Acho que se Carlos, hoje ficasse bem de saúde, não mais pensaria nessas teorias malucas. É aquela história: “pimenta no olho do outro não arde.” – Cal entendeu as minhas preocupações e fiquei exultante de alegria porque, ela e os filhos tinham idéias e convicções religiosas diferentes das dele.
VI


Maria insistiu para que fossemos visitar naquela tarde, último sábado de março de 2006, o professor Carlos. Não lhe falei da conversa que tinha tido com Cal, estava com um pontinha de vergonha por ter-lhe tocado naquele assunto, porém, ela tinha me assegurado que entendia como um desencargo de consciência. Por isto, eu e Maria fomos ao hospital.
-Maria o professor Carlos foi transferido para o quarto 112, mas não se encontra lá, um paciente informou-me que ele acaba de entrar em coma e subiu (a CTI ficava no andar superior) para CTI. – Maria ficou arrasada. Nós já tínhamos sabido que além dos três dedos que tinham sido amputados, os médicos tiveram que amputar boa parte do pé que necrosou. Com sua ida para o Centro de Tratamento Intensivo-CTI, as coisas iam ficar mais difíceis.
-Ricardo, Cal está aí. Ela me disse que o problema da trombose agravou-se e depois da amputação da parte do pé, ele teve febre e foi levado às pressas para CTI com suspeita doutro derrame cerebral.
-Maria, acho que o nosso amigo Carlos vai pra cidade de pé junto, a coisa está feia...
-Deus é o dono da vida. Ele tem que se apegar ao Salmo 23 que diz:
“...Embora eu caminhe por um vale tenebroso,
nenhum mal temerei, pois junto a mim estás:
teu bastão e teu cajado me deixam tranqüilo...”

-A vida Maria, às vezes, não vale a pena ser vivida. Quando já não temos controle sobre as nossas ações, os nossos desejos e temos que recorrer às pessoas até para realizar os nossos desejos primários, é melhor que partamos...

VII

Um ano depois.

Tem gente que não acredita em milagre. Prefiro acreditar que existe. Como explicar a saída de uma pessoa que vagou na sombra da morte por vários meses e um ano depois, está praticamente saudável e quase sem nenhuma seqüela? Não tem explicação. É a mão do Criador manifesta. É a prova inconteste que a ciência e os cientistas têm suas limitações.
Carlos, hoje, tem uma vida quase normal, afora alguma dificuldade na fala e nos reflexos motores, ele está lúcido, lendo mais do que escrevendo e passeando de quando em vez com a família.
Embora nunca tivesse partilhado com as idéias de Carlos sobre a eutanásia e em especial com o discurso de Dr. Santillo que é uma autoridade médica com vários trabalhos científicos publicados. A eutanásia, o suicídio assistido e outras formas de ajudar morrer, é para quem perdeu a fé em Deus, a auto-estima e a vontade de viver. E, principalmente, para àquelas pessoas de fácil verborréia e que nunca em seus braços um ente-querido seu esvaiu-se para eternidade.
Quando me lembro da conversa que tive com Cal, coro de vergonha, só não me enrubesço mais pelo fato dela ter me tranqüilizado que todos em sua casa conheciam o desejo de Carlos.
Hoje, tenho medo e pena daquelas pessoas que com aura sapiente se arvora como dona da verdade, simplificando esses assuntos para sociedade.

Autor: Rilvan Batista de Santana – Academia de Letras de Itabuna – ALITA
e-mail: rilvan.santana@yahoo.com.br
 
Rilvan Santana
Enviado por Rilvan Santana em 29/06/2012
Alterado em 03/08/2012


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Imagem de cabeçalho: Sergiu Bacioiu/flickr