Bichinho de pelúcia
Bichinho de pelúcia
R. Santana
I
No dia 13 (não sei se era uma sexta-feira) de janeiro do ano 2005, o jovem executivo Dalton Bianchini, acordou cedo com uma missão inadiável: comprar um bichinho de pelúcia para presentear sua filha Júlia que fazia 10 anos de idade naquele dia. Uma tarefa simples, ele poderia usar até um dos seus prepostos da sua empresa para comprar um brinquedo no Shopping da primeira esquina, o objeto de desejo de Julia, no dia anterior, na hora de dormir, ela cobrou:
-Papai, amanhã será o meu aniversário, não esqueça do meu bichinho de pelúcia!
Levantou-se cedo, antes de sair, foi ao quarto de Júlia, deu-lhe efusivos e carinhosos parabéns, fez um desjejum rápido e saiu. Noutros dias, saía de casa um pouco antes das 9 h, mas naquele dia, tinha que tomar algumas providências internas na sua loja de auto-peças, antes de atender os seus clientes.
Saiu de casa com uma dor no peito inexplicável. Não era uma dor física, mas um crescente mal estar, uma angústia que se manifestou ao longo do dia de trabalho. De quando em quando ouvia a voz de sua mulher, recomendando que chegasse cedo em casa para celebrar o aniversário da filha:
-Dalton chegue cedo, só iremos cantar os parabéns quando você voltar!
-Não se preocupe, à tardinha, quando o movimento da loja estiver fraquinho, irei comprar o presente de Júlio e virei direto para casa. – prometeu.
II
Palavra dada promessa cumprida. Às 17h e 10 min, Dalton tomou as últimas providências de praxe na empresa, pegou o carro e entrou na avenida que levava ao Shopping Mar&Mar, o principal centro comercial varejista de Ilhéus e das cidades circunvizinhas.
Não foi fácil encontrar um brinquedo de pelúcia que atendesse às exigências de Júlia. Não que faltassem brinquedos, mas pelo excesso deles. Dalton já tinha percorrido algumas lojas que lhes apresentaram uma quantidade variada de bichinhos em beleza e preço. Ele não estava preocupado com o preço, Júlia lhe era especial e o seu dia natalício também, por isto, mandou enrolar um lindo e grande Scoby Doo.
Ela não queria boneca tão comum em sua idade. Com fixação em desenho animado, Scoby Doo era o seu principal herói virtual, então, pediu que o seu pai o transformasse em pelúcia.
III
A senhora Bianchini já tinha subido e descido várias vezes as escadas de sua residência. Era um duplex com designe arquitetônico moderno. O prédio ficava numa área com garagem, jardim, piscina e uma quadra esportiva com gangorra, trepa-trepa, balanço, escorregadores e outros brinquedos de recreação.
As mesas e as cadeiras da festa já tinham sido distribuídas e arrumadas na garagem e na quadra. Afora as três empregadas, Mary Bianchini tinha contratado um buffet que tinha providenciado os quitutes, os tira-gostos, a bebida e a arrumação do ambiente.
Às 19:00 horas, o nervosismo da senhora Bianchini era visível. Os convidados e os colegas de Júlia começavam chegar e o seu marido não retornava do trabalho. Já tinha ligado para meio mundo, mas a resposta era a mesma: tinha saído quase no final do dia para comprar um presente pra filha.
IV
À saída do Shopping, na área de estacionamento, Dalton é arremessado por um automóvel, dirigido por um jovem e imprudente motorista. Um acidente besta, imprevisível, numa área bem sinalizada e a velocidade desenvolvida pelos automóveis, é inferior a 20 km/h, gravidade maior é que no atropelamento uma das pernas teve uma fratura exposta.
Dalton estirado no chão, agarrado ao bichinho de pelúcia (protegeu-o com o corpo), gritava com dores lancinantes. Tentou levantar, mas debalde, preferiu ficar deitado no asfalto e gritar por socorro.
Constrangia-lhe o ajuntamento de curiosos e a dor tornava-o mais desesperado quando pensava que naquela hora, sua família o esperava para comemorar o aniversário de Júlia.
A ambulância não tardou chegar ao local do sinistro. Todas as providências de socorro foram tomadas pelo pessoal da administração do shopping e o jovem atropelador também não foi omisso em socorrer-lhe.
V
-Dr. Armando, chegou nesse instante no pronto-socorro um homem atropelado por um carro, com uma fratura exposta na perna direita, aparentemente, só teve isso – avisou-lhe a enfermeira.
- Senhorita, eu estou de saída. Hoje é o aniversário de minha filha mais nova e a minha mulher já ligou uma dúzia de vezes. Procure outro!...
-Doutor, eu já procurei outros cirurgiões da área, ninguém responde, os celulares estão em caixas-postais ou fora de área. Parece-me que todos estão combinados ou falta de sorte desse senhor que está gritando de dor. – argumentou.
-Peça ao médico clínico, aplicar-lhe umas injeções à base de codeína ou tromadol para conter as dores do paciente até os médicos plantonistas chegarem.– estava irredutível.
-Doutor, eu ouvi dizer que é um rico empresário, inclusive é conhecido por alguns funcionários daqui. O clínico que me pediu para lhe falar. Desculpe-me doutor, mas se esse homem tiver qualquer problema, vão lhe acusar de omissão. – sentenciou sua secretária.
-Oficialmente, o computador vai dizer que não estou mais aqui. Há uns 10 minutos que fechei a pauta da minha freqüência. Informe ao Dr. Cazuza que não me encontrou. – sugeriu-lhe.
-Doutor, há um provérbio popular que “a corda quebra no lugar mais fraco”, não vou mentir. – respondeu-lhe.
-A senhorita está desafiando-me?! – perguntou-lhe nervoso.
-Não, não, porém, eu não serei culpada se alguma coisa ocorrer. Se chamada para prestar algum esclarecimento, irei dizer que lhe dei o recado do médico clínico. O senhor assuma seus pepinos. Tenho família para sustentar e preciso deste emprego. – ela estava decidida.
-Tudo bem, vai lá diga ao Dr. Cazuza que tome todas as providências e faça os procedimentos necessários antes de encaminhar o paciente para sala de cirurgia – quando a enfermeira Mônica ia saindo:
-Não se esqueça de avisar ao anestesista! – estava fulo de raiva.
VI
Doutor Armando não era má pessoa, era um profissional responsável, humano, todavia, como todo ser humano tinha os seus dias de fraqueza. Naquele dia seria a festa de aniversário da filha mais nova. Demais estava de saco-cheio. Se não tivesse feito o juramento de Hipócrates, não teria atendido os apelos de sua enfermeira, que tudo fosse para o inferno!... Gostava da profissão, mas para manter o padrão social da família e as crescentes despesas educacionais dos filhos em detrimento de uma política de governo de salários achatados na saúde, exigia que o profissional trabalhasse cada vez mais.
Por outro lado, Dalton Bianchini não tinha problemas financeiros imediatos, mas naquele dia 13, ele acordou com urucubaca. Pense em um dia que tudo sai errado? Pensou? Pois, esse foi o dia de Dalton. Saiu de casa com um mal estar inexplicável, na empresa teve que passar o dia driblando maus clientes e solucionando problemas. Se não fosse o diretor da empresa não teria saído para comprar o presente de Júlia, pareceu-lhe que todos os problemas da empresa tinham despencado de uma vez em sua mesa de trabalho. No final da tarde, deixou que o tempo e o destino se incumbissem da solução dos problemas e comunicou à secretária:
-Senhorita Sílvia, não estou mais para ninguém. Algum problema agende-o para amanhã. Tenho que ir comprar o presente de Júlia. Eu e Mary não lhe dispensamos à noite.
Para cumprir os maus presságios, surge um jovem inconseqüente, que entra num estacionamento de um shopping como se estivesse numa pista de mão única e fosse o dono do asfalto que estivesse à sua frente, deixando a preocupação e os riscos com o motorista que viesse à sua traseira.
VII
-Alô, é dona Mary?
-Sim, o quê deseja?
-Dona Mary, aqui é do hospital Santo Antônio... – foi abruptamente interrompida.
-Hospital? Meu Deus... O quê houve com Dalton!? – estava desesperada.
-Calma senhora, foi um acidente...
-Acidente?
-Sim, mas tenha calma, tudo está sob controle. O senhor Dalton foi atropelado por um carro e fraturou a perna direita... – foi interrompida mais uma vez.
-A senhorita me pede calma e meu marido aí hospitalizado!!! – gritou.
-Por favor, senhora, nada de pânico. Seu marido está lúcido e pediu-me para que não estragasse o aniversário da garota com sinistras notícias, logo, ele estará em casa. – tentou tranqüilizá-la.
Mary era impulsiva, não fez alarde, mas dispensou os convidados, informando-lhes os fatos e rumou-se para o hospital...
VIII
Um dia depois. Dalton estirado numa cama de hospital com a perna direita parafusada, enfaixada, mantinha certa fleuma, parecia menos desesperado que a mulher e os filhos. O pós-operatório era traumático, ainda sentia dores e o mal estar dos aparelhos, mas procurou dissimular com a entrada de Júlia no apartamento:
-Vem cá querida! - abriu os braços. Júlia choramingando, abraçou-se ao pai calorosa.
-Calma querida, o pai está inteiro (riu e apontou os aparelhos), mesmo com essa perna quebrada. Quero lhe dar os parabéns, mesmo extemporaneamente... – brincou. Clamou à enfermeira:
-Senhorita, que é de o nosso bichinho? – Mônica saiu e voltou logo depois com um objeto enrolado de papel presente e amarrado de fitas e entregou-o ao senhor Dalton.
-Pensa que me esqueci da minha princesa?... – entregou-lhe o pacote. Júlia abriu o embrulho, extasiada gritou:
-Meu bichinho de pelúcia, meu bichinho de pelúcia, meu bichinho de pelúcia!..