Textos


A força do preconceito
R. Santana
 

     O motel “Maçã Verde” amanheceu, naquele dia, lotado de policiais, delegado e gente do IML, quase todos interessados na morte daquele transexual não conhecido, identificado pelo nome de Luiz Carlos..., um celular com agenda extensa de possíveis clientes, um relógio modelo feminino, uma bolsa com alguns produtos de beleza de mulher e um pouco de dinheiro.
     Os funcionários juravam que não o conheciam que nunca o tinham visto e não sabiam informar quem o tinha levado ali. Pra piorar, o plantonista acrescentou que na noite do crime o movimento tinha sido intenso, que as câmaras não estavam funcionando e por discrição, pouco se dava ao trabalho de esmiuçar o interior dos veículos, além de garantir-lhes que naquele dia não houve nenhum caso de suspeição, que tudo ocorrera na rotina de sempre.
     O local do crime estava quase intato se não fossem os lençóis revoltos e os travesseiros espalhados sobre o rosto da vítima. Pelo seu porte avantajado, embora feminino, a vítima deve ter se dado às perversões e às fantasias do criminoso, deve ter se deixado amarrar mãos e pés sem oferecer resistência, facilitando assim, os instintos de selvageria do homicida.
     A cena do crime mexeu com os nervos dos profissionais mais experientes com as desgraças humanas, não houve quem não fizesse uma cara de horror do que viu no quarto do motel “Maçã Verde”, naquele dia, a vítima estendida na cama com as pernas abertas, sem escroto e sem testículos, o sangue ensopando o colchão, os braços estendidos e amarrados à cabeceira da cama, pedaço do pênis na boca do transexual e o que mais assustava era a cara de tortura e os olhos esbugalhados da vítima e no seu peito esquerdo uma faca encravada até o cabo.
     Sonhos interrompidos, um corpo masculino que não se aceitou jogado no caixão para necropsia e corações de pais e amigos despedaçados.

                                                                                       ***

     A casa noturna “Black & White” funciona de Sexta-feira a Domingo, sempre lotada. O repertório musical é samba, é sertanejo, de quando em vez, o rock`n roll, bandas estrangeiras ou alguma música especial a pedido de clientes especiais. A clientela é de maioria jovem mesclada de pessoas não muito jovem. Os garçons circulam pelas mesas com bandejas, copos e taças de bebida e comida com desempenho invejável. Quando alguém bebe além do normal e arma arruaça, é contido pelos seguranças numa boa...
Maurício e Tiago não conheciam a casa “Black & White”, foram lá pela primeira vez, embora estivessem gostando da festa, ainda se sentiam peixes fora d`água, acostumados com as festas de família, aquele ambiente exagerava em luxo e suntuosidade. Porém, educados em escolas tradicionais, aprenderam sublimar suas emoções sem vexames.
     Tiago, mais novo, porém mais sagaz com mulher, chamou a atenção do irmão para uma linda morena que comia Maurício com os olhos:
     - Brother, aquela mulher não lhe tira os olhos!
     - Qual mulher!?
     - A morena que está sozinha naquela mesa do bar à direita!...
Maurício começou olhá-la de soslaio e se deu conta que Tiago tinha razão, a morena, descarregava-lhe com os olhos uma tonelada de libido que lhe começaria incomodar se não fosse o apoio e insistência do irmão:
     - Brother, vai lá!
     - Ainda não, vamos dar tempo ao tempo...
     Ao contrário do seu irmão, Maurício é cismado e caladão. Na cidade onde eles moram, Tiago é arroz de festa, brinca com os rapazes e namora as moças, gozador e satírico não perdoa a garfe de um colega, enquanto Maurício, embora não tivesse inimigos, não tinha amigos, afora os irmãos ninguém priva de sua intimidade, depois de Deus, a família, o estudo e o trabalho preenchem o seu mundo.
Tiago, moleque, não se contenta enquanto não junta ambos:
     - Meu irmão!
     - Estou encantada, Sarita!...
     - Maurício. Eu que estou deslumbrado!...

                                                                                  ***

     O táxi deslizava lentamente no asfalto, no meio da noite, rumo ao motel “Maçã Verde”, no banco de trás, Maurício e Sarita aos beijos e abraços... O motorista de quando em vez, olhava para o retrovisor de esguelha, mas com profissionalismo, naquela vida há muito tempo, aprendera desde cedo, que a discrição e o fingimento eram condições essenciais para não se envolver e nem ser envolvido em rolo, quando questionado por algum marido traído ou mulher traída, suas respostas lhe vinham à língua com facilidade: “Não sei”, “Não os conheço”,      “À noite, todos os gatos são pardos”, “As mulheres são as rainhas do disfarce”, etc., etc.
     A luz fosca do quarto e os espelhos do quarto valorizavam o sexo e o romantismo. Sarita, ofegante, lasciva, esfomeada, desabotoou num instante a camisa de Maurício, tirou-lhe a calça e a cueca com volúpia, suspendeu seu vestido à altura da barriga, virou-se de costas e deixou-se possuir pelo macho com gritos e grunhidos de prazer.
     Maurício, vorazmente, joga-a sobre a cama, tirou-lhe a roupa e começa mordisca -lhe as orelhas, lhe chupar o pescoço, beijá-la com sofreguidão, beijar e sorver os seios, lamber- lhe com volúpia a barriga, descer... quando, de repente, ele encontra uma protuberância de esparadrapo na genitália, desce num impulso da cama, berrando:
     - Que diabo é isso!?
     - Um pedaço do corpo que me consome a mente e a alma!
     - Você é homem!?
     - Sou mulher presa num corpo masculino!
     -Veado!!!
     O preconceito motivou o crime.

Autor: Rilvan Batista de Santana
Membro da Academia de Letras de Itabuna – ALITA
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Imagem: Google
Rilvan Santana
Enviado por Rilvan Santana em 26/06/2012
Alterado em 07/10/2024


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