D. Morte
R. Santana
A morte é uma bicha traiçoeira, quando menos se espera, ela bate na porta do ser vivente, independe de idade: criança, jovem, adulto, velho, todos estão em sua lista desde o nascimento, uma coisa é certa: “Quem moço não morre, velho não escapa”. Não se pode dizer que a morte é preguiçosa, ela trabalha diuturnamente.
Alguns caricaturistas representam-na como um ser esvoaçado com uma grande foice; outros, um ser encoberto por uma capa preta com uma foice no ombro; há ainda quem a represente com duas foices em xis, com asas e flutuando; os gozadores representam-na sentado no esqueleto de um reles pangaré ou ostentando um grande relógio numa das mãos e a maldita foice na outra, alertando: - Olhe sua hora!...
Ninguém gosta de fila. Fila de banco, fila de lotérica, fila de médico, fila de hospital e outras filas são ojerizas de todos os mortais, de quando em vez, espertinho é repelido quando usa a Lei de Gerson para ser atendido primeiro, mas a fila da eternidade nenhum espertinho quer ser o primeiro, pelo contrário, cede com presteza o seu lugar:
- Se o senhor quiser pode ir. Eu não tenho pressa...
- Não! Eu não furo fila, é sua vez, eu tenho todo tempo do mundo... – completa: - se lá for bom o senhor venha me dizer! - ninguém tem pressa...
Até Jesus Cristo no seu momento humano de angústia e aflição, antes do beijo de Judas, teve pavor da morte, dizendo: “Pai, se queres, passa de mim este cálice; todavia não se faça a minha vontade, mas a Tua” (Lucas 22:42).
Para os ateus, a morte não é uma passagem para outra vida, mas o retorno da matéria á sua origem e a fluidez de energia concentrada num corpo. Para alguns religiosos, uma evolução do espírito; para outros, o homem morre porque é pecador, limitado, São Paulo enuncia: “Por que o salário do pecado é a morte, mas o dom gratuito de Deus é a vida eterna, por Cristo Jesus nosso Senhor” ( Romanos 6:23).
Os gregos, os romanos e os povos orientais renderam-lhe tributos em suas mitologias deístas: Tânatos, Kali, Shinigami e Yama etc. Tânatos deus da morte de coração duro, filho de Nix, deusa da noite e Hipinos ou Érebo, a noite eterna do Hades. O hinduísmo tem o seu deus da morte, personificado por Kali, uma mulher escura com um colar de crânios e braços decepados, um horror!... Shinigami é o deus da morte dos japoneses, pra cada tipo de morte, é um deus diferente, ele leva a alma humana para o outro mundo. E, Yama é o senhor da morte dos indianos.
Os poetas e os ficcionistas de todas as gerações falaram da morte pessoalmente ou através de seus personagens. A escola literária romântica foi quem mais descreveu a luta, a angústia e o drama existencial do ser humano e o medo da morte. Os seus representantes se afogavam na boemia, na bebida, no nacionalismo exacerbado, no amor utópico, no amor ideal, nos prazeres da carne, nas volúpias e não foram poucos os que morreram, prematuramente, pelo “Mal do Século”.
Lord Byron teve premonição de sua morte, Mozart compôs o seu Réquiem, Augusto dos Anjos cantou tanto a morte que recebeu o título: “O poeta da morte”. Mário Quintana, também, escreveu sobre o amor, a vida e a morte. Machado de Assis “imortalizou” a morte com o seu romance “Memórias Póstumas de Brás Cuba”. Brás Cubas, depois de morto, escreve suas memórias com palavras sarcásticas, irônicas, fúnebres e começa o seu livro deixando ao primeiro verme que lhe comeu esta dedicatória: “Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver, dedico com saudosas lembranças estas Memórias Póstumas”.
O melhor livro de Jorge Amado: “A morte e a morte de Quincas Berro d´ Água”, ao contrário de Machado em que Brás Cubas destila o seu humor negro, Quincas, um antigo funcionário público, morre três vezes (morte moral, morte natural e morte no mar), ao lado dos seus amigos, regado de muita cachaça e música.
Porém, a morte não é tão má, tem o seu lado folclórico. A consciência coletiva registra mitos e estórias humoradas, aforismo, de uma morte bonachona e boazinha, veja:
Num lugar bem distante, no outeiro de uma serra, morava um casal ainda não maduro. O homem, um destemido lavrador; a mulher, cuidava da casa e das criações. Viviam para o trabalho de sol a sol, com exceção do dia de domingo quando eles iam a cidade louvar a Deus e comprar o fato e a carne-de-sol da semana. Certo dia, D. Morte bate no barraco do casal e pergunta à mulher pelo paradeiro do seu marido. A mulher atabalhoada, responde-lhe que o seu marido àquela hora, deveria estar lavrando a terra ou no cabo do machado cortando lenha. Sisuda, com as faces descarnadas, vestida de preto, deixa-lhe um recado:
-Avise ao seu marido que no próximo inverno virei buscá-lo, dou-lhe esse tempo para descansar! – num piscar de olhos, desapareceu...
O tempo passou, o lavrador redobrou-se no trabalho, sua mulher o admoestava:
-Homem, D. Morte mandou-lhe descansar, pára homem!... -Mulher, “cavalo de corrida morre na pista”, não vou ficar esperando D. Morte na cama, morte é morte, não é? – colocava o embornal nas costas e se mandava pra roça. Os dias se passaram e as estações do ano também e quando o tempo chegou D. Morte bateu na porta do lavrador para levá-lo, mas não o encontrou. A mulher questionada repassou-lhe o recado do marido e D. Morte, ao invés de levá-lo, lhe admirou a coragem e não lhe tirou a vida por uma centena de anos...
Porém, quando alguém lhe quer engambelar:
Um velho enfermo recebeu a visita de D. Morte. Ele choramingou, implorou, pediu-lhe mais um tempo, pelo menos que lhe deixasse viver até o aniversário da netinha... D. Morte derreteu-se de dó, quê significava mais uns dias? Nada! Nada demais satisfazer o pedido de um avô e deixou o pobre diabo em paz. Os dias se passaram, o velho rijo, vendendo e emprestando saúde fez o aniversário da netinha e gozou da festa. Final de festa, todos recolhidos aos seus aposentos, o velho também, D. Morte lhe reapareceu para cobrar o trato. O velho ardiloso, tratante, pediu-lhe mais tempo, queria ver a neta formada... patati... patatá... patiti... patatá... e joga conversa fora em D. Morte... Então, estressada de muito trabalho, preveniu o velhaco: - Tudo bem! Você me pegou de boa maré, quando for sua hora me chame!... Os dias se passaram. O puto velho, mais alegre que “pinto no lixo”, caiu na gandaia, na bebedeira e na esbórnia, trato esquecido... Certo dia, na mesa de um bar, passa D. Morte encarnada numa morena de tirar o chapéu: bumbum empinado, peitos furando o sutiã, cabelos cor de graúna, rebolando num salto quinze, aí o velho não aguentou:
-Mata o velho!... Mata o velho!... .Mata o velho!...
E o velho morreu! Não se engambela D. Morte...
Autor: Rilvan Batista de Santana
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Membro fundador da Academia de Letras de Itabuna – ALITA
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