Textos


João Bode
R. Santana

     O prenome era João, porém, o nome “Bode” não lhe foi dado na pia batismal, mas por algum espírito crítico, gente espirituosa, gente que tem facilidade de colocar apelido no outro que se encaixa como uma luva, e, quem criou esse apodo de “bode” para o negro João, deu-lhe com tanta precisão que de apelido “bode”, virou João Bode. Aliás, não foi nenhuma genialidade desse autor porque João Bode não falava, não raciocinava, ele “bodejava”, suas palavras saiam atropeladas, não dizia coisa com coisa, “berrava” com voz rouca ininteligível, enfim, o negro João Bode era um retardado mental, um idiota de alma pura.
     Não sei precisar a idade quando o conheci no início dos anos sessenta, deveria ter naquela época, uns 40 anos de idade com idade mental de 8 anos. Raros fios de cabelo branco começavam despontar na sua cabeça preta encarapinhada. Se a sabedoria popular não falha: “negro quando pinta tem três vezes trinta”, João Bode deveria ter muito mais idade do que aparentava, melhor diria que João Bode tinha idade indefinida ou a idade que se quisesse lhe dar.
     Ele se aproximava um pouco da figura do homem de Neandertal: queixo comprido reforçado, um pouco dentuço, nariz acompanhando o maxilar, olhos perdidos no tempo, dentes perfeitos, baixo, troncudo, pés chatos e era preto como as asas da graúna. Não se sabe se por doença ou acidente, puxava um pouco a perna esquerda. Tinha boa índole, quando os moleques troçavam-no, ele não usava de violência física nem nomes impróprios, no máximo, bodejava algumas palavras sem significado e seguia o seu caminho.
     Não tinha sido chocado, contudo, não se conhecia sua família. Ele convivia há muito tempo com a família de Antônio Sena e Horácio Almeida, o seu cunhado, não como filho ou empregado, porém, como uma espécie de escravo alforriado do Século XX, um agregado, um criado, um serviçal, sem direito a salário ou tempo de serviço, João Bode comia e vestia as sobras dos seus protetores e era feliz!...
     Embora João Bode fosse um retardado mental, os seus trajes e sua higiene pessoal chamavam a atenção do mais desligado indivíduo, ele não andava sujo ou rasgado, gostava de roupa branca, sapatos limpos, escanhoado, carapinha escovada, banho tomado, quem não lhe conhecesse, tomava-o como alguém importante e mente perfeita.
     Naquela época, não se falava de aloprado, de dólares na cueca, rublos nas meias, reais no paletó, valerioduto ou outros meios de surrupiar, de roubar o dinheiro público, todavia, os políticos eram tão desonestos quanto os políticos atuais, pífio era o controle jurídico dos recursos públicos, os Tribunais de Contas não eram tão aperfeiçoados quanto os de hoje e a imprensa tinha suas limitações.
     O político que assumia cargo executivo ou legislativo, mesmo de uma cidadezinha do interior, se fosse pobre saía rico, pois as maracutaias de superfaturamento de obras, fraudes de notas fiscais, malversação e desvios do dinheiro público grassavam com a mesma força dos tempos modernos. Nunca se soube que um político ladrão fosse parar atrás das grades por meter a mão no dinheiro do povo.
     Foi nesse clima de imoralidade pública generalizada, que a juventude elitizada de Itabuna promoveu (eleição de 1962 para prefeito e vereadores), com o apoio da sociedade, um movimento de protesto político e João Bode foi escolhido como candidato de mentirinha a vereador para representar a insatisfação da população itabunense com a política e os políticos.
     Ele teve um desempenho melhor do que o esperado e tornou-se folclórico com o slogan: “Vote em João Bode, comigo ninguém pode”. Em sua campanha política não faltou carro de som, não faltou palanque, não faltaram “santinhos”, não faltou outdoor, não faltou nada na campanha do candidato a vereador João Bode, até um teco-teco foi alugado para que o candidato, lá de cima, inundasse a cidade de panfletos do seu programa legislativo, dentre muitas promessas, a promessa de colocar os políticos corruptos na cadeia.
     O movimento de protesto liderado pelo filho do advogado Ubaldino Brandão (ex-prefeito), começou fraco, mas, pouco e pouco, foi tomando gosto pelo povo e no meio da campanha política já esvaziava os comícios dos principais candidatos de verdade. A molecada, os jovens e os menos jovens não perdiam um comício de João Bode, a zombaria, a algazarra, os assovios e os apupos ensurdeciam a praça quando o candidato dizia (alguém soprava detrás do seu ouvido), que ia “transformar o rio Cachoeira num rio de leite com ribanceiras de cuscuz” ou “soltar os presos e prender os políticos ladrões” ou “mudar o mar de ilhéus para Itabuna” etc.
     Em cima do palanque ou da sacada de um prédio, de terno e gravata, João Bode, compenetrado, gozava de satisfação com as palmas e as vivas ao seu discurso e às suas tiradas espirituosas e o povo ainda mais.
     O dia da eleição chegou. Não havia urna eletrônica, o eleitor depositava na urna uma cédula que o mesário lhe dava, que naquela eleição, habilmente foi substituída por uma cédula de João Bode. Ele foi “eleito” e “reeleito” várias vezes se sua eleição fosse de verdade, porém, o pobre diabo ficou mais doido do que antes: - só bodejava eleição!...
     Diz a sabedoria popular que Deus marca no nascimento os seus filhos prediletos com uma deficiência física ou mental para não lhe perder de vista, portanto, João Bode deve ter sido um desses filhos marcados por Deus, não obstante ter sido usado, zombado, achincalhado, humilhado, debochado e aviltado em sua natureza, ele foi útil, permanece, hoje, o exemplo do seu protesto para que as novas gerações utilizem-no e erradiquem os malfazejos do povo.


Autor: Rilvan Batista de Santana
Licença: Creative Commons
Membro da Academia de Letras de Itabuna - ALITA
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Rilvan Santana
Enviado por Rilvan Santana em 21/06/2012
Alterado em 11/11/2024


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