O caminhoneiro
O caminhoneiro
R Santana
Diz o provérbio popular que quem conta um conto aumenta um ponto. Não existe outro preceito mais verdadeiro da comunicação oral.
Não me lembro do nome da técnica pedagógica que participei quando estudante, em priscas eras, mas lembro-me que um professor de Literatura, para justificar a força da tradição oral e a riqueza da imaginação popular, reunia um grupo de 15 ou 20 alunos numa sala, em círculo, cochichava ao ouvido do primeiro uma pequena historinha, a exemplo de: “o cavalo de Napoleão era branco e possuía uma cela dourada...” e cada aluno ia retransmitindo essa historinha ao ouvido do mais próximo e quando o último aluno contava o que tinha ouvido do penúltimo, a historinha continuava fiel à sua essência, mas novos fatos lhe eram acrescidos nunca diminuídos.
Nas minhas férias juninas deste ano, conheci um caminhoneiro em Estância, alegre cidade sergipana, com um veio humorístico natural que se bem produzido e lapidado, deixaria o rouquenho Chico Anísio e o intragável Tom Cavalcante no chinelo.
Irei chamá-lo de Clinton. Não é o mulherengo Clinton e ex-presidente estadunidense, é um Clinton sergipano, ingênuo, simples, pai de família, que se diverte fazendo gozação de tudo e de todos. O seu alvo preferido é o negro: “a culpa é da princesa Isabel...” e arrematando: “... mas tudo vai voltar ao que era, pois a princesa assinou a Lei Áurea a lápis!...”, então, com a própria mulher: “quando eu a conheci, a única carne sem osso que ela comia eram bofes de carneiro, agora, a infeliz só quer comer filé-mignon, ou, a primeira vez que a levei para praia, ela perguntou-me onde era a fila do ingresso”.
Não pense o leitor que Clinton é racista, conhece História, Antropologia, deboche com maldade do negro ou discrimine o pobre, é tudo brincadeira e gozação, pois ele tem pessoas que lhe são caras que são negras e pobres. Ele não fala em tom racista e discriminatório, mas usa os notórios fatos históricos como gancho para sua comédia cotidiana.
Pois foi esse humorista do povo que me contou uma história de arrepiar os cabelos sobre um caminhoneiro que ficou enguiçado na estrada por uma falha mecânica ou elétrica de sua carreta, no escuro da meia noite.
Não sei se reproduzirei ipsolon por ipsolon a narração de Clinton, mas procurarei ser fiel às suas palavras e se o leitor achar que estou lhe faltando com a verdade, que estou inventando, que acrescentei mais de um ponto ao conto, darei o endereço de Clinton e se foi um conto da carochinha que ele me contou, que sua despesa de ir até lá seja ressarcida. Porém lhe advirto: pescador e carreteiro mentem mais do que cachorro de preá, é muito difícil, nós, de imaginação mediana, descobrirmos, onde a mentira finda e a verdade começa.
Contou-me que um caminhoneiro quebrou o seu carro antes de chegar aos Treze de Lagarto. Um lugar bonito, cercado de muitas fazendas de pecuária e muitos sítios, mas pela adiantado da hora, não havia uma viva alma para pedir socorro, fazia medo. Destemido, o motorista ligou uma lamparina à bateria e começou futucar a máquina para localizar o defeito e sair daquele sufoco. Quando do nada surgiu um homem, ainda moço, oferecendo-lhe ajuda.
O caminhoneiro assustou-se no início, mas o desconhecido foi-lhe tão prestativo, convincente, que na casa do sem jeito, ele não teve outra saída senão aceitar os seus préstimos:
-O senhor é mecânico? – perguntou-lhe o carreteiro.
-Trabalhei muito tempo com essa marca de carro!
-Não dirige mais?
-Não, dou socorro aos meus colegas, quando me é oportuno!... – e assim, deu-se o encontro.
Ficaram mais de três quartos de hora mexendo aqui e acolá. Descobriram que o defeito era de somenos importância: um fio que tinha rebentado e interrrompido a corrente que alimentava o sistema elétrico. Restaurado o sistema elétrico, arrumada as ferramentas e grato pelo serviço, o carreteiro desejou quase a pulso, compensar financeiramente aquele desconhecido que não sabia de onde ele tinha vindo e não sabia para aonde ele ia e que lhe tinha sido tão providencial.
-Senhor, aceite o meu pagamento! – pediu-lhe o carreteiro.
-Não, não fiz nada para merecer este pagamento!
-Deixe de ser modesto! Se não fosse o senhor, eu teria que ir a Lagarto buscar um mecânico ou um reboque, por um fiozinho rompido... – insistiu o carreteiro. Por isto, o desconhecido lhe propôs:
-Já que o senhor insiste, passe nos Treze e dê esse dinheiro à minha mãe!... – deu-lhe o endereço e o nome de sua genitora e seguiu viagem a pé.
O carreteiro, pelo atraso, pela pressa, passou nos Treze e foi direto para Lagarto e somente lá depois da carga entregue é que se lembrou do compromisso e no retorno passou pelo lugarejo para localizar o endereço e a mãe daquele que lhe socorreu num momento difícil e depois de alguma procura, encontrou uma velha senhora de cabelos encanecidos e grande foi sua surpresa:
-Minha senhora, foi o seu filho que me pediu que lhe desse este dinheiro!!! – repetiu o caminhoneiro pela terceira vez.
-Já disse ao senhor que não tenho filho homem. O único que tinha morreu num acidente de caminhão há quatro anos! – disse-lhe a pobre senhora.
-O seu nome é Elizabeth Pinheiro?
-Sim!
-Aqui não é Rua X?
-Sim!
-Existe outra Elizabeth Pinheiro aqui nos Treze?
-Acho que não!
-Então, é a senhora mesmo!... – o caminhoneiro já impaciente, quando surge uma jovem senhora que intercede no diálogo:
-Senhor, o único irmão que eu tinha morreu há quatro anos!
-Sua mãe já me falou!
-Ele deu-lhe o nome? – o caminhoneiro ficou meio absorto, forçou a mente para lembrar, mas por fim...
-Acho que disse qualquer coisa como “Kiko”, “Kid”, “Quito”... – as mulheres estavam intrigadas...
-Quito! – adiantou a irmã. Completou:
-Ele se chamava “Francisco”, mas nós o chamávamos de “Francisquito”, inicialmente, depois de “Quito” e com o apelido de “Quito” morreu!... – o caminhoneiro estava estupefato e mais estupefato ficou quando lhe foi mostrado o retrato de Quito exposto na sala:
-Ele pouco antes de morrer!... - indicou-lhe a jovem senhora.
Dúvida desfeita, segredo mantido. O caminhoneiro por pouco não dá um faniquito. Reconheceu o seu benfeitor, não havia dúvida: tinha sido aquele homem do retrato que lhe tirara do sufoco na estrada erma com a carreta enguiçada. Mas como explicar isso às bondosas senhoras? Não, não sabia explicar-lhes, elas não iriam entender o mistério do fantasma ter-lhe socorrido, por isto, o segredo estava mantido e a dúvida delas desfeita:
-Não, não foi este moço senhoras... Perdoem-me pelo transtorno!– desculpou-se.
O caminhoneiro saiu dali às pressas, perturbado, a custo deu o dinheiro à velha senhora com o pretexto de tê-la metido naquele equívoco e não mais ter tempo para desvendá-lo.
O caminhoneiro jurou para os seus colegas que jamais voltaria àquela estrada, sozinho!...
Hoje, na curva daquela rodovia, alguém mandou fincar uma enorme cruz de madeira e no seu sopé uma pequena lápide com a seguinte inscrição:
“Quito (*1950 e + 1988), não morreu pela vontade de Deus, mas pela sua permissão continua caminhando por essa estrada...”.
Autor: Rilvan Batista de Santana – Academia de Letras de Itabuna – ALITA
Gênero: Conto (registrado)
e-mail: rilvan.santana@yahoo.com.br