Fidelidade
R. Santana
Ela chegou sem ser chamada. Uma carinha sem vergonha, olhos cor de mel e uma boca e umas orelhas grandes para o seu tamanho, sem falar do rabo que é enorme. Ela chama-se Hanna. Falo do presente, porque graças a Deus, ela está vivinha entre nós.
Sua idade é indefinida, deve ter uns 13 anos no calendário humano e uns três anos no calendário animal. Já tinha tudo para ser mãe: peitos, menstruação e órgãos genitais perfeitos e saudáveis. Para não emprenhar e para controlar o fluxo sangüíneo, ela tomava anticoncepcionais, melhor diria, anticoncepcionais eram lhe aplicados.
Poder-se-ia dizer que é nossa neta, pelo fato da nossa filha casada e sem filho, tomou-a para criar ainda recém-nascida. Entre as duas, havia uma grande cumplicidade que com exceção do trabalho, aonde minha filha ia, ela ia atrás.
Como todo jovem casal, a minha filha e o marido, quando iam às festas ou viajavam, deixavam a nossa “neta” adotiva conosco e quando voltavam das festividades ou das viagens, por força da rotina do trabalho de ambos, ela foi ficando e ficou.
Inicialmente, relutamos aceitar àquela nova responsabilidade: “quem pariu Mateus que balance” mas ela é tão sapeca que quando voltava para casa dos seus pais “adotivos” deixava-nos um vazio...
Alguns dias atrás, em um dos seus retornos (a minha filha e o marido viajaram), por um descuido meu e da esposa, Hanna foi levemente acidentada. Um maldito carro a bafejou, jogando-a contra o passeio. Para não perturbar o casal, que estava em gozo de férias, cuidamos dela nesse acidente como se fossemos seus verdadeiros avós.
Foi uma correria, aflição para todo lado, vizinhos acudindo, a minha mulher me culpando pelo acidente e não menor a minha ira pela sua negligência. Todos apavorados pelos gritos lancinantes e choro de Hanna. Pensávamos que tinha fraturado uma costela ou outro osso de menor ou maior importância. Mas levada ao médico com urgência, feitos exames físicos, radiografias, constatou-se que ela tinha sofrido leves luxações traumáticas no peito e arranhões na cara, mas tudo de somenos importância ou gravidade vital.
Trazida para casa, cuidamos dela como um bebezinho que é. Antibióticos, pomadas “spray”, ungüentos caseiros, chá de mastruz e por aí afora. Ficamos aliviados quando oito dias depois, ela foi voltando andar sem seqüelas e pintando o sete.
Hanna é muito travessa, às vezes, faz xixi e outras coisas nos lugares mais inconvenientes. Por mais que ralhemos, ela parece entender nossa bronca no primeiro momento, nos olha com uma carinha tão safada, nos promete com os olhos que não mais fará estripulias e dois dias depois, repete tudo de novo.
- Hanna se você fizer xixi aqui, irei esfregar sua carinha nele! – Ela promete que não, mas fica na promessa, quando esquecemos e achamos que ela entendeu nossas admoestações, ela quebra seu compromisso e deixa uma enxurrada de mijo no sofá ou no meio da casa.
Toda reprimenda desce pelo ralo diante da sua doçura meia hora depois, basta o repressor de suas necessidades fisiológicas sentar-se no sofá ou em qualquer lugar, ela chega querendo sem querer, se aconchegando entre as pernas e logo depois, se estira toda tomando conta da situação. É preciso que seja um energúmeno, desprovido de sentimentos para não se derreter de emoções diante de tanto carinho.
Às vezes, fico pensando se todas pessoas do mundo fossem como Hanna e seus irmãos, o paraíso prometido pelos cristãos seria aqui na Terra, independente doutras mazelas da humanidade. Hanna não enxerga as meus defeitos, ela só enxerga as minhas qualidades. Não me discrimina, nunca cheguei para ela está enfezada, de cara feia, de calundu. Quando ela ouve o barulho do meu carro ou minha fala, começa fazer festa de boas vindas. Sobe nas minhas pernas, agita-se toda e enquanto não a coloco no colo e dou-lhe um beijo, dizendo que estou bem, ela não deixa de se agitar.
Embora seja feminina, ela e seus irmãos de raça nunca serão infiéis. Mesmo que lhes façamos alguma maldade, dois minutos de carinho, de afago, de estripulia, é o que é necessário para eles esquecerem de qualquer má ação praticada pelo criador. Ela não guarda ódio, ressentimentos menores, vinganças, malquerenças, ela só guarda alegria e bem querer. Ai daquele ou daquela que tente agredir-me em sua presença. Aí, ela se torna mais irracional...
Quem não compreende essa relação de amor, não entende e nos censura. Acha pieguice e talvez procure na psicologia animal e humana uma resposta. Poderá dizer que estamos sublimando frustrações e fracassos amorosos reprimidos no subconsciente. Responder-lhe-ia que a ciência não explica com quem, como e quando o amor acontece. Ele acontece.
- Quem é Hanna? – É a minha pequerrucha, a minha salsichinha, a minha cachorrinha BASSET, a verdade reclama: uma “gata”!...
Autor Rilvan Batista de Santana
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