Textos


Carta para Paula
R. Santana

Querida filha:

     Há dezessete anos não conversamos e não nos vemos, às vezes, nos encontramos em sonhos, mesmo assim, não nos falamos, tu sempre distantes de mim, como se o tempo tivesse destruído o nosso amor e apagasse o nosso passado. Tu se lembras de mim, de tua mãe e dos teus irmãos? Acredito que sim, aliás, não tem tanto tempo a nossa separação, dezessete anos, é um ínfimo tempo do infinito tempo.
     Quanta saudade nós sentimos de ti!... Lembro-me dos teus primeiros passos, do teu primeiro aninho de vida, da tua primeira mamadeira, do teu primeiro bico, da andadeira que suado comprei para que tu começasses andar e peraltear pela casa, tudo era festa... Lembro-me quando começastes ler, sinto ainda hoje, o orgulho contido quando tua primeira professora elogiava tua inteligência e vaticinava futuro promissor que o destino te sucumbistes...
     Naquele mês de março de 1992, nos teus 15 anos, quando debutastes na vida social, toda fogosa, linda de viver, a minha princesa, tu despertastes olhares gulosos dos mancebos presentes e ciúme de pai, senti-me o homem mais feliz do mundo, mais realizado do que um sheik do petróleo e mais rico do que Bill Gates, pois ali estava o meu tesouro dado por Deus que nem Bill Gates nem o mais rico dos sheiks teriam fortuna igual, mas um ano depois, os desígnios do Senhor mudaram essa história para sempre, destroçando o meu coração, a minha alma e tirando-me a vontade de viver...
     O quê fazer, Paulinha? Tu foste para eternidade e nos deixou, aqui, neste mundo de prazeres efêmeros, de lágrimas, de doenças, sofrimento e desespero intermináveis. Às vezes, Paulinha, eu penso que Deus virou as costas para este mundo de promiscuidade, corrupção, perversão, egoísmo, maldade, ganância, injustiça e desamor, assim se explica, as desventuras do homem bom, do homem justo e os infortúnios das crianças inocentes.
     Tu deves ter lido o meu trabalho sobre felicidade, predestinação, determinismo, livro arbítrio, “O mundo das possibilidades”, Jesus e a natureza de Deus e etc., ali Paula, parece-me que encontrei a resposta para indiferença do Senhor às desgraças humanas. Somos as nossas circunstâncias, o mal em si não existe, vivemos no “mundo das possibilidades”, as coisas acontecem não como castigo ou permissão de Deus, as coisas acontecem conforme as possibilidades necessárias ou contingenciais, mas as coisas acontecem...
     Àquela noite de 11 de Novembro de 1993, a noite da dor, do sofrimento, da despedida, a noite que tu nos deixaste para sempre, a noite de mil noites, não “As mil e uma noites”, mas a noite que no leito da cama, tu destes o último suspiro de vida e nós, os teus pais, impotentes ao teu lado, restava-nos chorar, somente chorar, naquele fatídico momento, gritamos e nos revoltamos com Deus e com os céus, não entendíamos como Ele tirava de maneira sofrida a jóia mais preciosa que nos tinha dado, foi a noite mais mórbida, a mais mórbida do que todas as noites...
     Hoje, mais maduro e resignado pelo tempo, compreendo que a morte é uma possibilidade necessária para que o homem se perpetue em espírito incorruptível e não mais pereça, isto é o que nos sustenta, pois se não vivermos pela fé, se não tivermos algo para nos agarrar, se perdermos a esperança nas promessas do Senhor, a vida não vale a pena ser vivida, melhor seria o homem não ter nascido do que viver sob o auspício duma vida eterna de mentirinha.
     Num desses dias, acordei-me assombrado com a televisão ligada, a luz e o som entrando pela fresta da porta, tua mãe jurando que não a tinha ligado; eu não jurei, mas teimava também que não a tinha ligado, aí... o medo tomou conta de mim e dela, nós ambos, pensamos que algum “ladrão” se divertia sentado na cadeira do papai assistindo televisão, comodamente, gozando com o nosso medo de abrir a porta e encontrá-lo de chofre na sala... O meu coração saltava pela boca, já sentia o cano do revólver cutucando a minha costela, quando tua mãe, mais corajosa, puxou-me de lado, abriu a porta e lá para o nosso alívio, nem a sombra do ladrão encontramos.
     Porém, não me conformei de todo, pensamento lógico, eu não aceitei o argumento de tua mãe que me responsabilizava pela ligação da TV e dormido depois, por mais que batesse o pé que não a tinha ligado, ela insistia em me culpar, mas a resposta veio depois ao sonhar contigo o resto da noite. Naquela noite tu apareceste a mim em sonho, compreendi então, que foi tu Paulinha, que usou a cadeira do papai e a televisão para mandar-me um recado que somente tu e eu sabemos...
     A saudade não passa e o meu amor é eterno, sinto saudade de ti diuturnamente, não aquela saudade doída dos primeiros dias da nossa separação, mas uma saudade suave, perene e desprovida de ansiedade, uma saudade amiga que o tempo não consegue apagar.
     Enfim, os teus pais e os teus irmãos desejam que do lado de lá as coisas estejam bem melhor do que do lado de cá, que o teu sofrimento quando passaste por aqui serviu para melhorar tua alma e aproximar-te de Deus, nós do lado de cá, estamos purgando os nossos pecados a cada dia, numa peregrinação sofrida, na esperança de que um dia, todos nós, estejamos juntos não em tempo humano, mas em tempo infinito.
     Amor, amor eterno dos teus pais e irmãos!...
 
 


Autor: Rilvan Batista de Santana
Licença:Creative Commons
Membro da Academia de Letras de Itabuna







 
Rilvan Santana
Enviado por Rilvan Santana em 01/06/2012
Alterado em 11/09/2024


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Imagem de cabeçalho: Sergiu Bacioiu/flickr