Textos


Carta para Maria João
R. Santana

Querida Maria João:


     Recebi ontem, dia 28 de agosto do ano cristão de 2008, o seu livro, com o sugestivo título: “O polvo não sabia que o mexilhão tinha asas”. Quero lhe pedir licença para fugir de qualquer formalidade lingüística e misturar os pronomes de tratamento, usar figuras de linguagem, figuras de estilo, como eufemismos, hipérboles, ironias, metáforas, metonímias e por aí afora, assassinar a gramática, cometer algumas cacografias e usar uma linguagem descomprometida e nada convencional, uma linguagem de tabaréu que nunca arredou pé do seu país.
     Como ia lhe dizendo, recebi o seu livro e fiquei envaidecido, abestalhado, parvo, corri para os vizinhos e minha família para mostrar-lhes que uma escritora portuguesa, que mora do outro lado do oceano, uma europeia, me honrara com um livro autografado e uma carinhosa dedicatória: “Para o Rilvan, meu amigo e companheiro de escrito, com um grande abraço”. Que honra para um desconhecido cidadão!... É que Maria, aqui na minha cidade, a maioria me conhece como um simples professor e não com o dom de colocar palavras bonitas e cheias de vida no papel.
     Não sou um mestre da prosa e nem da poesia, não nasci com a inteligência linguística do baiano Ruy Barbosa, que na Conferência de Haia deixou o Barão de Marschall da Alemanha no chinelo, por ter as ideias mais brilhantes e falar em todos os idiomas oficiais daquela conferência e quando o seu antigo professor e filólogo Ernesto Carneiro Ribeiro fez alguns senões ao seu estilo na redação do Código Civil do Brasil de1902, Ruy deu origem a maior polêmica filológica da língua portuguesa com vários livros de Réplicas e Tréplicas, nunca visto dantes, tamanha briga de egos e vaidade intelectual. Porém, eles deixaram para posteridade, uma análise filológica da língua portuguesa que ainda serve de parâmetro aos lingüistas de hoje.
     Por isso, a razão da minha euforia quando o livro chegou, recebia duma pessoa tão distinta, de uma poetisa da prosa, o epíteto de “companheiro de escrito”, isto é, tinha passado de um simples escrevinhador de pálidas histórias da vida, do dia-a-dia, para categoria de escritor. Há distinção maior para quem gosta de mexer com as palavras? Acho que não!...
     Cara amiga Maria João, eu não tive tempo ainda para ler todos os contos do seu livro, mas o que li: “O sonho do rio”, “Infatigável lanterna”, “Chave Mágica”, “Um caranguejo em apuros”, dentre outros, tem uma coisa em comum: o lirismo. É uma prosa adocicada, fácil, leve, com cheiro de rosa, de personagens simples, humanos, diria: ingênuos de alma e coração, mas não é de admirar, pois o título do seu livro é, talvez, o menor poema do mundo: “O polvo não sabia que o mexilhão tinha asas”. Não sei se a preclara amiga, o escolheu pela sonoridade ou pelo eufemismo que encerra em si, enquanto o polvo é um predador, cheio de tentáculos, que come peixes e crustáceos e invertebrados, o pobre do mexilhão fica preso às rochas através dos bissos e é um prato predileto das estrelas-do-mar.
     Em comum, o mexilhão e o polvo, são apetitosos moluscos, que os chefes de cozinha do mundo, criam os mais variados e gostosos cardápios, mas enquanto o polvo entorpece os seus predadores, lançando em sua fuga uma tinta tóxica e espessa, o pobre do mexilhão fecha-se em suas negras e azuladas conchas e ao invés de veneno, oferece pérolas ao homem, o seu mais pérfido predador.
     Ah minha amiga, tua sensibilidade poética deu “asas” ao indefeso mexilhão para que ele se desgarrasse das rochas e fugisse dos seus inimigos naturais e surpreendesse o polvo com suas asas. Mas, minha amiga, cá como lá nas terras lusitanas, não faltam gênios da palavra, artífices na descrição do amor e construtores imbatíveis da prosa e da poesia. Sua terra é um seleiro de talentos inesgotáveis. Gênios como Camões, Eça de Queirós, o cego Castilho, Júlio Diniz, Alexandre Herculano, Camilo Castelo Branco, Ferreira de Castro e mais recente, Fernando Pessoa, honram qualquer pátria e qualquer nação, com certeza, hoje, eles continuam portugueses de nascimento, porém, acima ou abaixo da pátria, eles são patrimônios da humanidade.
     Aqui como lá, estimada Maria João, temos também os nossos gênios da música, da pintura, da poesia, da ciência, do futebol e, principalmente das letras. Tu conheces: Machado de Assis? Monteiro Lobato? Graciliano Ramos? José Lins do Rego? Jorge Amado? Érico Veríssimo? Drummond de Andrade? Guimarães Rosa? Vila Lobo? Cartola? Castro Alves? Álvares de Azevedo, Aluísio de Azevedo? Tomás Antônio Gonzaga? Certamente que sim.
     Porém, erudita Maria João, dentre esses monstros sagrados, eu quero tua licença, para falar de dois gênios que se não tivessem nascido nestas tupiniquins, seriam tão endeusados quanto William Shekspeare, Milton, Allan Poe, Haminguey, Dante Alighieri, Plínio, Cícero e tantos outros que a memória me trai.
     Tu ouviste falar de Joaquim Maria Machado de Assis? Claro, porém, tu conheces a vida e a obra de Machado de Assis? Acredito que sim, mas minha amiga se tu não conheces a fundo esse gênio brasileiro, peço-te que dê uma folga aos seus afazeres e mergulhe na vida e na obra desse imortal das letras, desse artista da pena, pois além do exemplo de superação que deixou de menino pobre, mulato, gago, epiléptico, órfão de mãe e pai paupérrimo, ele aprendeu sozinho, latim, grego, francês, inglês e senhor absoluto da língua portuguesa.
     Com certeza, a minha amiga já leu Dom Casmurro, a Cartomante, Ressurreição, Memórias Póstumas de Brás Cubas e tantos outros títulos deixados por Machado de Assis, que me escuso citá-los para não encher o saco e a paciência da querida Maria João.
     Dom Casmurro minha amiga, é uma elegia em prosa. Machado de Assis vai tecendo fio por fio da trama, o amor, a amizade, a infidelidade, a confiança, a traição, a paixão e come frio o prato da vingança, mas “in dúbio pro réu”, é castigado ao longo do tempo pela consciência da incerteza e da dúvida e termina os seus dias longe de tudo e de todos, um dom casmurro, um anti-social e a memória de Capitu, Escobar e Ezequiel, corroendo dentro de si.
     Ademais minha amiga, é este mulato, descendente de escravos alforriados, casado com uma ilustrada mulher Portuguesa, Carolina Augusto Xavier de Novais, irmã do poeta português Faustino Xavier de Novais que fundou a nossa Academia Brasileira de Letras e foi o seu primeiro presidente. Hoje, sua obra é traduzida e lida em todos os rincões do mundo.
     Ah minha amiga, agora vou te pegar, sei que tu és uma intelectual das letras, uma filósofa, uma sabichona, mas tenho certeza que por essas nobres bandas lusitanas, não se conhece Angenor de Oliveira, ajudante de pedreiro, lavador de carro, biscateiro, fracassado negociante, serventuário público, poeta, compositor, sambista, músico e um dos fundadores da Mangueira, sua escola de samba verde rosa querida.
     Se ainda tu não descobriste quem é Angenor de Oliveira, tu não fiques triste, aqui, quase ninguém o conhece por este nome, mas se eu te falar, cá como lá, do compositor que produziu mais de quinhentas composições de primeira grandeza e foi visitado no seu Buraco Quente (um bairro no morro da Mangueira), por nada menos e nada mais do que os mestres da música, os maestros Stokovsky e Villa Lobos. O imortal Cartola, o conhecido negro Cartola, pérola negra da nossa poesia musical, acredito que tu sabes quem é, mas se tu ainda não lembraste, vejas aí em tua discografia, se tu encontras uma composição de Cartola, na voz da grande sambista Beth Carvalho:

As Rosas Não Falam
Beth Carvalho
Composição: Cartola
Bate outra vez
Com esperanças o meu coração
Pois já vai terminando o verão
Enfim

Volto ao jardim
Com a certeza de que devo chorar
Pois bem sei que não queres voltar
Para mim

Queixo-me às rosas, mas que bobagem
As rosas não falam
Simplesmente as rosas exalam
O perfume que roubam de ti

Devias vir
Para ver os meus olhos tristonhos
E, quem sabe, sonhavas meus sonhos
Por fim

     Mas se tu ainda fores bairrista como o teu compatriota Eça de Queirós, que certa feita disse que “falar bem o nosso idioma é pronunciar mal o idioma estrangeiro”, que não acredto, pela mulher moderna do Século XXI que tu tão bem representas, que tu só ligas pra fado e não gosta de samba, esclarecer-te-ei, que os dois gêneros se completam no canto e nos pés pela força da alegria e da dança.
     Minha amiga, volto a bisbilhotar “O polvo não sabia que o mexilhão tinha asas”, inxerido, descubro o teu reconhecimento ao teu cônjuge Carlos de Oliveira que contribui com o desempenho do teu trabalho. Não me surpreendi, porque antigamente, dizia-se erroneamente, que “por trás de todo grande homem, havia sempre uma grande mulher”, hoje, o “por trás de todo grande homem...”, foi substituído “ao lado de todo grande homem...”, contigo, dir-se-iá a partir do teu reconhecimento ao maridão que “ao lado de uma grande mulher, há sempre um grande homem”.
     Espero ter expresso nestas páginas, o meu modesto comentário sobre o teu livro que não rompe com o gênero da escola realista, concretista, positivista, materialista, mas coloca um pouco de açucar na realidade dura dos nossas dias, na angústia do homem e com letras coloridas coloca no papel a realidade da vida, sem ser piegas ou uma ingênua romântica.
     Quero te parabenizar pelo “O polvo não sabia que o mexilhão não tinha asas” e que este parabéns seja extensivo aos milhares de homens e mulheres que cultivam as letras, a música, a pintura, a dança e outras manifestações culturais. Dizer-te que a literatura é o alimento da alma, que enquanto tiver uma viva alma produzindo textos como os teus levando entrelinhas amor e experaça, o homem será mais feliz.
     Enfim, abominar os cérebros, as inteligências que produzem bombas atômicas, armas biológicas, armas nucleares, armas de fogo, foguetes e toda parafernalha que destrói o homem e sua esperança de paz!... Do    amigo, agora, “companheiro de escrito”, Rilvan Batista de Santana, São Caetano, Itabuna (BA).


e-mail: rilvansantana2005@yahoo.com.br 
Blog: http://saber-literario.com
http://saber-literario.blogspot.com
 
Google: Imagem ilustrativa
Rilvan Santana
Enviado por Rilvan Santana em 31/05/2012
Alterado em 16/11/2024


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Imagem de cabeçalho: Sergiu Bacioiu/flickr