Textos


O travesti - R. Santana


          No início dos anos 80, moravam na Serra do Padeiro, região dos índios Tupinambás, “Chico Zabelê” e “Ana Tanajura “. Ele, bicho do mato, cabra macho, caboclo valente, homem hábil no biscol e no clavinote, burareiro de cacau; ela, outrora vedete do baixo meretrício de Buerarema, se conheceram jovens, se amancebaram, formaram uma família e construíram uma fazenda de cacau e algumas cabeças de gado no sopé da montanha do Padeiro.
          Analfabetos de pai e mãe e madrinha de apresentar, assim que os meninos ficaram taludos, eles compraram uma casa na cidade de Itabuna e colocaram os filhos na escola. Não deixaram a fazenda, os filhos ficaram aos cuidados de uma irmã de Chico Zabelê, de 15 em 15 dias, eles vinham pagar as despesas de cereais no armazém, desobrigar outras despesas pessoais dos meninos e da tia “Clô”, e, matar a saudade dos moleques. Nas férias escolares, de Junho e final de ano, todos, tia e sobrinhos, arribavam pra “Fazenda São José”, podar cacau, beber leite no úbere da vaca e tomar banho no riacho do Padeiro.
          Aonde Chico Zabelê ia, sua mulher ia atrás, para o seu vizinho de fazenda, a elogiava: “ela é mios zóios e mias zorêias”, e acrescentava: “mio pé di boi”, ou seja, Ana Tanajura cuidava de tudo, enxergava tudo, não arredava o pé da fazenda, exceto, de quinzena em quinzena, para visitar os filhos e colocar ordem na casa de Itabuna. Ela não bebia nem fumava, não tinha vaidades femininas, seu mundo se abreviava em cuidar da burara, do marido e dos filhos. Embora fosse dona de 2000 arrobas de cacau, se misturava sem destaque, com as mulheres de outros caboclos menos afortunados que o marido e, as mulheres dos seus trabalhadores. Ela não possuía pabulagem nem a empáfia das mulheres dos outros fazendeiros da região.
          Chico Zabelê não fumava, bebia de quando em vez para ‘isquentar o fio”, justificava, uma fera inocente, não possuía pabulagem, mas era um homem de pouca conversa, as más línguas afirmavam que seu clavinote tinha derrubado muitos “índios” e posseiros pra cravar mais de 100 hectares naquelas terras sem fim. Seu único divertimento depois das “horas marianas”, era ouvir a “Voz do Brasil” e a “Rádio Globo”, no seu rádio “SEMP”, portátil, último modelo, depois, fazer “sapeca iaiá” com sua mulher e embuchá-la com 12 filhos, afora as percas, ao longo dos anos.
          A vida da família de Chico Zabelê continuaria sem sobressalto, se João Luís, o filho mais velho, não resolvesse estudar medicina em Salvador. Sua mãe se desmanchou em lágrimas, seus irmãos ficaram desolados... Seu pai, mais duro, não chorou, mas ficou acabrunhado, tentou dissuadi-lo, porém, João Luís fincou o pé, queria ser doutor pra ajudar aquela gente pobre da Serra do Padeiro, seu argumento foi mais forte do que o sentimento de família, na casa do sem jeito, Chico Zabelê e Ana Tanajura cederam e ele arribou de mala e cuia pra Salvador.
          João Luís não se tornou médico, aproveitou a ignorância de seus pais, pediu-lhes dinheiro, de burra cheia, maior de idade, foi correr mundo, depois fixou-se em São Paulo. Ele alimentava os pais com mentiras megalômanas diversas. Cansados, desiludidos de verem o filho doutor, explorados financeiramente e psicologicamente, Chico Zabelê e Ana Tanajura deixaram de responder às cartas e às extorsões do filho mais velho e ingratidão tira a afeição, João Luís foi ignorado pelos pais e irmãos.
          Porém, filho é laço eterno, basta um gesto de desculpa, um “mea-culpa”, um choro de arrependimento e, tudo volta ao normal. Os pais são semideuses, eles perdoam e justificam todos os pecados dos filhos, os filhos são entes que precisam sempre de proteção e defesa, os filhos são etenos meninos. E, João Luís era mestre na arte de dissimular... Astuto, escreveu aos pais e aos irmãos (agora, quase todos adultos), uma chorosa e lamurienta carta e pedia pra voltar: “...estou cansado de dar murro em ponta de faca...”, mas tinha uma surpresa, como surpresa só revelaria no tempo certo.


Abra-se parêntesis:
          No meado dos anos 80, surgiu Roberta Close, primeira modelo transexual a posar nua para edição brasileira da revista Playboy. Sua exposição na principal revista de modelos nus do país, deu a Roberta Close (Luiz Roberto Gambine Moreira, nome de batismo), projeção nacional e quiçá internacional, pois além de bonita, ela rompia com muitos estigmas: os homossexuais enrustidos, os gays, os travecos, deixaram o armário e a leva de seus seguidores cresceu em proporção geométrica.
          Ela causou tanta impressão no meio na imprensa e no meio artístico, pela beleza e desafio aos preconceitos, que foi chamada para desfilar em inúmeras marcas de moda de renomes, a exemplo de Thierry Mugler, de Guy Laroche, de Jean Paul Gaultier e trabalhar como atriz. Além da revista Playboy, também teve destaque em editoriais para Vogue, Globo, Última Hora, Estadão, enfim, toda imprensa falada e televisada do país.
          A família brasileira assustou-se!...
Fecha-se parêntesis.


          Domingo, dois meses depois: jagunços, trabalhadores, meeiros, mulheres do trampo, meninos, meninas, Chico Zabelê, Ana Tanajura e filhos, aguardavam ansiosos por João Luís, no terreiro da “Fazenda São José”, quando alguém avistou de longe uma Rural Willys e gritou:
          - Olhe, ele chegou! – não demorou muito tempo, quando o automóvel parou no terreiro, o filho de Ana Tanajura e uma linda mulher se despediram do motorista e aproximaram-se da pequena multidão. Agora, mais alto, mais corpulento, mais bonito, a cara da mãe, cheio de bigode e cavanhaque, João Luís, apresentou sua mulher aos pais e irmãos: “mãe, pai, irmãos, Layse, a surpresa...”. Foi um beija-beija, “muito prazer em lhe conhecer”, um chororô, “lindos cunhados”, quando Layse beijava Chico Zabelê, surge da multidão, como uma bomba, um moleque que colocou tudo a perder:
          -Ih! Seu Chico Zabelê beijou um homem! Ah, ah, ah... – antes que todos se recuperassem do susto, acrescentou:
          - Gente, olhe o “pomo-de-adão” e os pés dele!!! – a desgraça estava feita. Todos perceberam que Layse não era mulher, Chico Zabelê reagiu:
          - Fio mardito, tu é casado cum home!? – João Luís ficou perturbado, gaguejou, titubeou, quis explicar o inexplicável, não convenceu... Chico Zabelê furioso:
          - Fora de minha fazenda seus xibungos! – os irmãos de João Luís fizeram coro:
          - Fora seus viados! Fora maricas! Não já ouviram papai falar? – a multidão não aguardou a resposta, perdeu as estribeiras, depois de rasgar o vestido de Layse, deixando-a, apenas, com tapa-sexo de esparadrapo, botou pra correr o casal, com bofetadas, vaias, apupos e achincalhes:
          - Fora viados! Ah, ah, ah, ah!!!!
          Ambos foram encontrados mortos, num lamaçal, dois dias depois, com estacas no cu. A família não chorou...

 


Autor: Rilvan Batista de Santana
Licença: Creative Commons

 

Att.: Imagem que ilustra a história é do Google/DARK BLOG

Esta história ocorreu nos meados dos anos 80, há 40 anos, quando a intolerância e a ignorância eram normais.

 

Rilvan Santana
Enviado por Rilvan Santana em 12/11/2016
Alterado em 08/12/2022


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Imagem de cabeçalho: Sergiu Bacioiu/flickr