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Angústia de poeta - R. Santana

Angústia de poeta
R. Santana

Fazia tempo que o poeta Kiko Salles angustiado se debruçava sobre suas medalhas na mesa quando sua mulher de forma afetiva, mas dura, chama-o pra cama:
- Meu velho, o tempo está frio, vamos dormir! – ele não responde, ela insiste:
- Cuidado com sua bronquite!
- Sara, não me apoquente, não vês que estou refletindo!?
- Os poetas vivem no mundo da lua... – brincou.
- Não brinca, Sara!
- Meu velho, tristeza não paga dívida, a saúde vem antes, sem a saúde ninguém produz, portanto, vem pra cama homem! – ele continuou onde estava.
Kiko Salles já estava acostumado com Sara, muito tempo de convivência não mudou sua natureza prática, ela lê como ninguém, sua produção literária, gosta dos seus contos infantis, não gosta de seus poemas, ela adora suas crônicas, principalmente, as crônicas do passado, dos seus amigos de infância, as situações vividas pela família e as crônicas que Kiko fala da mãe, por exemplo, são poemas em prosa e Sara goza de prazer em lê-los.
Porém, ela é prática, mulher de ação no trato com os serviçais e com a vida, sensível, mas não a ponto de deixar de dormir uma noite fria como aquela por questões literárias. Não entende aquelas brumas do marido, de quando em vez, ele refugiava-se em si mesmo, deprimia-se, demorava sair do estado de “catarse” e voltar ao cotidiano, mas isto ocorria com frequência quando algum crítico de expressão literária lhe era severo.
Naquele dia, Kiko Salles não se angustiou em vão, havia sofrido o maior desapontamento que um artista da palavra pode passar: o não reconhecimento público, a prova in loco de não ser lido. Ele havia sido convidado para abrir o seminário de “Literatura do Sul da Bahia” promovido pelo “Colégio Estadual Zeus” e quando o diretor o apresentou como o poeta vivo mais importante da região, o entusiasmo do auditório foi nenhum, não houve vaias, mas um silêncio acusador, ninguém o reconheceu nem pelo nome nem pela presença. Não se soube depois se a saída espirituosa do diretor atenuou o constrangimento do poeta, mas justiça lhe faça que tentou: “Prezados alunos, o CEZ irá premiar 5 alunos inscritos em 1000, no final do seminário, que apresentar melhor resumo biográfico do nosso convidado. O primeiro prêmio, um “Computador”; o segundo, um “Celular”; o terceiro, o mais novo “Aurélio”; o quarto e o quinto, um DVD com as questões do ENEM dos últimos três anos. Nunca mais ninguém daqui, vai ignorar o poeta Kiko Salles!” – deu-se início ao congresso cultural.
Naquela noite, enquanto Sara dormia, ele refletia sobre sua atividade produtiva literária, além de poemas, fez ensaios, novelas, crônicas, contos, contos infantis, e romance, por isto, não compreendia não ser popular em sua cidade, cidade que tantos versos lhe foram dedicados, tantos trabalhos literários divulgam seu nome. Agradeceu, mas não gostou do arranjo do diretor do colégio de ensino médio CEZ, a emenda foi pior do que o soneto, salvo se o concurso de sua pequena biografia já estivesse programado. Tranquilizou-se depois com o pensamento objetivo de Sara: “Meu velho, nenhum profeta é reconhecido plenamente onde nasceu, Jesus Cristo não é unanimidade em Israel”.
Embora Kiko Salles seja septuagenário, é alto, forte e, fisicamente está bem, não apresenta fraqueza intelectual próprio da velhice, produz como moço, não faz muito tempo, publicou seu único romance. Todavia, seu humor não é mais o mesmo, seu estado de espírito é instável: ora bem humorado, ora mal-humorado. Porém, as más línguas sustentam que o seu mau humor é histórico, não chegou com a velhice, quando moço teve fama de intratável, despótico, egoísta e autossuficiente.
Alguns dias depois do episódio CEZ, o poeta voltou apresentar comportamento estranho: nervoso, taciturno, inapetente, leitura compulsiva, escrita frequente, desleixo pessoal e rabugento. A boa Sara já estava acostumada aos transtornos psicossomáticos e às ansiedades sem motivo ou quase sem motivo do marido, sua intervenção era providencial, no início, ele resistia lhe contar suas angústias, na casa do sem jeito, abria-se como macaxeira e desembuchava seus ressentimentos:
- O filho da puta da RBS não quer publicar o meu romance!
- Se você bancar o livro?
- Sara, que proposta estapafúrdia! Além de produzir, eu vou bancar o livro?
- Manuel Bandeira, Fernando Pessoa e Monteiro Lobato bancaram seus livros... – Kiko Salles explodiu:
- Endoideceu Sara? Quem lhe contou essas maluquices?
- Li em algum lugar!...
- Ah ah ah... – Sara não gostou:
- Não deboche!...
- Não estou debochando, mas não deixa de ser risível, tu entendes de literatura o que entendo de missa!
- Deixe de ser presunçoso! Eu sou pedagoga e boa leitora, além de conhecer toda ginástica que faz para publicar seus livros, sempre sua produção foi independente e o Editor: $$$.... – Kiko Salles levanta o braço...
- Vai me bater!? Faça isto e o mundo vai conhecer o grande embuste da literatura baiana! – Kiko Salles cai em si, pede-lhe desculpa:
- Perdoe-me, foi um gesto insensato, não irá mais acontecer!
- Acho bom... Juízo homem!
Kiko Salles encerra-se no quarto de visitas e só saiu de lá dois dias depois, sem comer e beber, com ajuda dos filhos e da própria Sara.


Autor: Rilvan Batista de Santana
Licença: Creative Commons
Rilvan Santana
Enviado por Rilvan Santana em 12/08/2016


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Imagem de cabeçalho: Sergiu Bacioiu/flickr