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Marcas na alma R. Santana

Marcas na alma
R. Santana

     Não sou bom em datas, mas acho que foi no ano de 1978, nós saímos daqui para Ubaitaba com objetivo de ajudarmos implantar sua associação de professores, Itabuna já tinha sua Associação de Professores de Itabuna – API, uma estrutura sócio-política significativa um pouco menos do que Associação dos Professores Licenciados da Bahia - APLB. Além de mim, mais quatro professores: Ceres Marylise, Miralva Moitinho, Isaías Pinheiro e “Tavinho”. Fomos a Ubaitaba espremidos num Volkswagen, naquela época, o Volkswagen era o luxo do luxo.
     Miralva e Isaías eram mais afeitos à política de classe, ativistas, os demais lhes davam apoio moral e logístico – Ceres, filha de lá, conhecia professores, diretores de escola, secretário de educação e prefeito, além dos parentes-, “Tavinho”, o motorista. Coube-me pagar a despesa de combustível do carango ida e volta. A missão foi gratificada pelo acolhimento de trabalhadores da educação de Ubaitaba e Aurelino Leal. Soubemos depois, que a semente política de classe jogada às margens do rio de Contas, cresceu e tomou forma, os movimentos paredistas tornaram-se organizados e oportunos, cresceu a consciência cidadã.
     Não conhecia Ceres nem Miralva, logo nos tornamos amigos, diferente de Pinheiro e “Tavinho” que já nos conhecíamos fazia tempo. O diminutivo “Tavinho” não passava de um epiteto zombeteiro, pois o nosso saudoso Otávio Carmo Júnior tinha uns 2 m de altura, suas pernas empurravam o banco do motorista para trás e o encosto não ficava vertical ao assento, mas numa inclinação bem acima de um ângulo de 90º. “Tavinho” por ter biotipo longilíneo aparentava ser bem mais alto do que era. Ele era inteligente, sensível, generoso e solidário.
     O tempo e os diferentes interesses se incumbiram de dispersar o grupo, os nossos encontros ficaram amiúdes, esporádicos, de caju em caju, porém, este mundo é pequeno, no ano de 2011, na fundação da Academia de Letras de Itabuna – ALITA, eu reencontro a minha amiga Ceres, não mais moça e impetuosa, mas uma senhora doce, tranquila, sossegada, mesmo com as marcas na alma dos atalhos e descaminhos da vida, inspirada no canto dos deuses poetas.
     Comparar pessoas não é tarefa fácil, nós somos semelhantes, mas não somos iguais, as produções literárias e as obras de arte refletem a personalidade e o pensamento do autor, por isto, nenhum autor é igual ao outro, pode receber influência de alguma escola, de um indivíduo, todavia, cada produção traz a assinatura digital de seu autor.
      Como bairrista gostaria de comparar a poetisa Ceres à poetisa Cora Coralina, porém, a goianiense, doceira de profissão, cantou a vida, a terra, os becos de Goiás, suas pedras, as mulheres da vida, portanto, não há semelhança na arte duma ou de outra. Então, com quem comparar? Com Rachel de Queiroz? A escritora de “O Quinze”, uma epopeia da seca nordestina é antes de tudo, uma romancista, uma cronista, seus poemas são derivações dos seus livros, portanto, não existe comparação.
     Então, com quem comparar Ceres? Cecília Meireles ou Clarice Lispector? Não se pode negar a importância de ambas na literatura brasileira, porém, não existe afinidade entre elas e Ceres. Cecilia quase inocente canta o amor de forma lírica: “livre, leve e solta”, enquanto Clarice é paixão, é uma erupção que brota, é realismo. A nossa poetisa do cacau canta os mistérios da vida, a pequenez do homem e a importância de cada dia:
     “Sagrado
     Olhando
     o largo horizonte
     nossas horas matutinas
     vejo o quanto são pequenos
     todos os seres da Terra
     ante a grande evidência
     e a grande harmonia
     no nascer de um novo dia”. (Ceres Marylise)
     Ceres não é a principiante que se desmancha no canto das emoções fúteis, meladas, paixões comuns, amores impossíveis, nem se fecha na análise de um mundo absurdo, irreal, mas se deixa levar pela harmonia do belo, da natureza. O seu livro “Atalhos e Descaminhos” é mais uma reflexão filosófica da alma, da vida, do mundo:      “Transitória”, “Entre o irreal e o absurdo”, “Marcas na alma”, “Sobre a felicidade”, etc. etc.
     Embora tenha consciência que a vida, às vezes se apresenta absurda (Albert Camus e Søren Kierkegaard), é necessário que se dê sentido pra vida, assim como negar Deus é afirmá-lo. Se Deus morreu, é preciso criá-Lo mais humano e que o amor seja universal.
     “Que minha vida não seja
     um canteiro de renúncias
     nem areia movediça
     onde os sonhos se
     afundam”. (Ceres Marylise)
***
     “O mundo inteiro
     é um grito de aflição
     será que Deus morreu,
     abandonou sua criação?”...

     “Precisamos cria-lo
     novamente
     sem clonagem
     e mais humano
     numa noite
     de amor universal.” (Ceres Marylise)

     O estilo enxuto da poetisa Ceres Marylise se assemelha ao estilo de sua conterrânea Valdelice Pinheiro na forma e no conteúdo. Não fizeram grandes produções, toda obra de Valdelice Pinheiro, por exemplo, recentemente coletada e organizada pelo poeta Cyro de Mattos, é de 84 páginas em “O Canto Contido” e a obra de Ceres Marylise, um pouco mais em “Atalhos e Descaminhos” aos 67 anos de idade (Cora Coralina publicou seu primeiro livro: “Poemas Becos de Goiás e Estórias Mais”, aos 76 anos de vida, contudo, teve a sorte de viver quase 100 anos e produzir muito mais e ser reconhecida por Drummond...). Porém, qualidade não é quantidade, ambas as poetisas escreveram pouco, mas seus poemas são significativos, além delas dominarem a técnica da construção do verso, de acordo a métrica, ritmo e tempo, elas também não usaram os versos livres, comum hoje, com essa enxurrada de pseudopoetas.
     Peço licença ao leitor e convido-o à análise de dois pequenos poemas onde as poetisas celebram a vida e a morte, é grande a semelhança de estilo, que não é demérito para autora de “Atalhos e Descaminhos”, vez que Valdelice Pinheiro é considerada pela crítica especializada, a maior poetisa itabunense:
     “Poema para Kátia
     Sorri,
     menina azul,
     sorri,
     que o teu sorriso
     é sol
     no sol de toda primavera.” ( Valdelice Pinheiro)

     “Juno Carlo
     No silêncio sem pressa
     das horas noturnas
     enxergo o teu vulto
     na imaginação.
     E te abraço assim
     no teu rumo isolado
     lavando a amargura
     apesar da ilusão.

     Hoje, com os cabelos encanecidos, já no começo do fim, as marcas do tempo no corpo e na alma, eu choro o tempo que se foi, tempo de juventude, de esperança, tempo que não se pensava na morte, tempo que não volta mais mesmo que nascesse de novo. Os problemas foram diversos, porém o desejo de vencê-los era maior, aliás, não pensávamos em problemas, mas na realização da vida, no prazer de viver. Qual o prazer de viver num corpo decrépito? Nenhum! Quem o acha, acha-o por narcisismo, sadismo, masoquismo...
     “Tavinho” já se foi, muitos colegas daqueles tempos também já se foram, outros, estão no meio do caminho... Aquele Volkswagen já se foi e levou consigo muitas ideias geradas em sua barriga. Mas o homem não se dobra para o destino, nem a morte o dobra, pois o seu pensamento é imortal, o poeta é imortal:
     “ Sim, escrevo versos, e a pedra não escreve versos.
     Sim, faço ideias sobre o mundo, e a planta nenhuma.
     Mas é que as pedras não são poetas, são pedras;
     E as plantas são plantas só, e não pensadores.
     Tanto posso dizer que sou superior a elas por isto” (Alberto Caieiro / Fernando Pessoa)

Autoria: Rilvan Batista de Santana
Licença: Creative Commons

Membro Fundador da Academia de Letras de Itabuna-ALITA

Foto: Site da ALITA

Rilvan Santana
Enviado por Rilvan Santana em 03/12/2015
Alterado em 09/10/2023


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Imagem de cabeçalho: Sergiu Bacioiu/flickr