Textos


O homem nu

O homem nu
R. Santana


O velho mordomo Lucas já estava acostumado com a mudança de humor e esquisitices do seu patrão, o empresário Rodrigo Carradini Júnior, às vezes, mal se falavam por dias, mas ambos se respeitavam e se queriam bem, o velho mordomo o cuidou no dia a dia desde criança, enquanto o seu pai, o saudoso Rodrigo Carradini, tocava suas empresas. Não foi fácil educá-lo, Carradini Júnior tinha um temperamento autoritário e despótico. No fundo não era má pessoa, havia nele uns lampejos humanitários, mas sufocados pelo desejo escondido de ser mau.
Quando o velho Carradini morreu, Rodrigo já havia concluído a faculdade de administração e trabalhava nos negócios do pai, portanto, não lhe foi difícil assumir com ajuda de Lucas o comando das empresas já que não tinha irmãos nem os pais. Agora, Rodrigo com 45 anos de idade e Lucas um pouco mais de 70 anos de vida, as coisas se acomodariam se Rodrigo não ousasse mexer no seu destino:
- Mandou me chamar, patrão?
- Sim! – Lucas fez-se ouvidos e ele continuou:
- Faz algum tempo... eu ando com umas ideias na cabeça... quero sua opinião... multipliquei a minha herança por 100, mas sou infeliz, quero ser melhor de agora em diante e encontrar o prazer de viver... – Lucas ameaçou interromper-lhe, mas ele continuou:
- Quero me despir de todos os conceitos e princípios teóricos conhecidos, quero ficar com a mente e a alma nuas, um ser independente das contaminações sociais e religiosas ocidentais, um ser entre o limiar da santidade e do pecado! – Lucas não entendeu o que ouviu e lhe rogou explicação:
- Não lhe estou compreendendo, aonde quer chegar?
- Vou fazer uma longa viagem pelos países asiáticos, lá predominam filosofia de vida e fé religiosa diferentes dos judeus, dos muçulmanos e cristãos, quero conhecer de perto os budistas, os bramanistas, os confucionistas, os xintoístas, o modo de vida dos Dalai Lama do Tibete e o modo de vida dos monges budistas, enfim, eu quero descobrir se posso ser feliz entre o bem e o mal!
- Mas patrão, o bem e o mal existem em todos os lugares, não será necessário ir às conchichinas para ser bom ou ser mau!
- Eu sei Lucas, mas eu não quero o domínio relativo desse mal e desse bem, eu quero tramitar entre o bem e o mal absolutos, que não são contaminados pelos humores sociais, entendeu agora?
- Entendi, mas isso é impossível, o que é bom pra uns, é ruim pra outros, vai ser sempre assim, tem gente que gosta do meu jeito outros não, tem gente que a religião é um bem, tem gente que acha a religião um mal, tem gente que odiou as ideias de Hitler, para os aficionados, suas ideias foram verdades absolutas, tábuas de salvação... Todos os princípios morais, patrão, são relativos, a única verdade absoluta é Deus!
- Lucas, com sua ajuda, eu multipliquei por muitas vezes o que o meu pai me deixou, mas a esteira do sucesso financeiro e pessoal está cheia de maldade, egoísmo, mesquinhez, sovinice, falta de escrúpulo, frieza e insensibilidade, senão, eu seria triturado e engolido pelos que me invejam e pelos interesseiros, até as mulheres que eu tive não me amaram, mas amaram o luxo e as riquezas que lhes proporcionei, não sei nem se os meus filhos me amam... Agora, quero mexer na minha natureza bem longe daqui, não quero mais ser mau, eu quero ser feliz, eu quero ser bom!...
- Patrão, o bem e o mal são do tempo do mundo. Deus é o bem absoluto e o Diabo é o mal absoluto. Jesus Cristo praticou o bem absoluto com a ressurreição de Lázaro e o mal absoluto com a repreensão do Diabo, além disto, ele não nasceu do pecado nem viveu no pecado, ao contrário de Moisés e Maomé que nasceram do pecado e viveram no pecado. Portanto, qualquer que seja a doutrina religiosa, qualquer que seja o guia espiritual ou moral, existirá sempre essa dicotomia entre o bem e o mal, ninguém é completamente bom nem completamente mau!
- Quero conhecer outras culturas... Quero conhecer gente despojada de bens materiais, gente de elevado grau de espiritualidade e moral, o homem europeu e o homem americano estão corrompidos, são escravos do dinheiro e do consumo, faz tempo que o homem perdeu sua natureza primitiva... Hoje, prevalece o interesse social e não a necessidade individual... – Lucas deu uma sonora gargalhada.
- Falei alguma asnice, homem de Deus?
- Não!
- Então, qual o motivo do seu deboche!?
- Rodrigo, desculpe-me, não me queira mal, mas lhe conheço desde o tempo dos cueiros. Acho que fomos pai e filho noutras encarnações, não obstante eu ser pardo e você branco. As propriedades da água e do azeite são as mesmas, aqui, ali e alhures... Nunca irá mudar sua natureza egoísta, ambiciosa e fria, envernizada com a educação e disciplina do saudoso Carradini, no máximo, poderá sublimar seu modo de ser, jamais irá mudar sua natureza. A água dum vaso de barro pode passar para um vaso de porcelana, contudo suas propriedades permanecem, mesmo que suas impurezas sejam filtradas, jamais deixará de ser água!
- Reconheço sua importância na minha educação e criação, parodiando Aristóteles, Carradini minha deu a vida e você me ensinou a viver, porém, o homem não é só matéria, o homem é mais do que matéria, ele é mente e alma, tudo é possível no mundo das possibilidades, não existe determinismo, fatalidade é uma possibilidade...
- Nós somos nossas circunstâncias, a sociedade interfere em nosso destino, porém, não acredito em mudança intrínseca, o homem é mau por natureza, tenho minha desconfiança do que disse Rousseau, se não fossem os mecanismos de prevenção do estado e a educação, o homem seria o pior animal, pois é o único racional, portanto, patrão, não é necessário ir a nenhum lugar pra se tornar melhor, não espere pelos outros, o que depende de si!
Cinco anos depois:
Carradini Júnior não deu ouvido ao seu mordomo e amigo e passou 5 anos percorrendo mundo... Seguiu muitos mentores espirituais e morais, tomou o conselho de muitos gurus e mestres, iniciou-se em muitas e religiões e filosofias de vida, no Tibete, na Mongólia, Nepal, Vietnam, nos recônditos esquecidos da China e do Japão, culturas milenares ainda não corrompidas pelo homem moderno, mas...
- Lucas você estava repleto de razão, lá como aqui existe muita maldade. O amor ao próximo, a bondade, a pureza de coração, o desprendimento e a disposição para fazer o bem sem troca, não se encontram numa mesma pessoa nem lá nem aqui. A natureza humana é naturalmente má, a educação e a sociedade são fundamentais na formação de um ser bom. O homem é bom por opção, é o uso pleno do seu livre arbítrio, tanto aqui como lá o homem precisa perder os seus instintos primitivos se quiser ter vida longa e ser feliz!
- Então, Rodrigo Carradini, seja bom!
- Eu sou bom! Eu sou bom! Eu sou bom!...

Autor: Rilvan Batista de Santana
Licença: Creative Commons - Recanto das Letras.
Rilvan Santana
Enviado por Rilvan Santana em 20/10/2013


Comentários


Imagem de cabeçalho: Sergiu Bacioiu/flickr