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Zé das Medalhas R. Santana

Zé das Medalhas
R. Santana

Conversei com Zé das Medalhas faz pouco tempo. Acredito que “Medalhas” não é nome, mas um apelido que se adquire para estigmatizar o indivíduo. Nunca me atrevi perguntar-lhe se “Medalhas” é um apodo ou nome de família, a discrição é o segredo de uma longa amizade, além disso, morro de medo da ironia e do humor refinado, às vezes, escrachado de Zé das Medalhas. As más línguas juram por todos santos vivos e os que se encontram nos céus que o apelido de “Medalhas” foi tomado emprestado do casal conflituoso Lulu e Zé das Medalhas de “Roque Santeiro” em 1985, é que Zé naquela época tinha um casamento parecido e a molecada, quando não é verdade, inventa...
Porém, o que me atrai em Zé das Medalhas grapiúna não é o seu passado de infidelidade doméstica, aliás, todos nós somos vítimas de traição, de deslealdade, quando a pérfida não é da santa esposa, é da filha, do amigo, do parente, mas o seu jeito crítico e escrachado de gozar o mundo. Num dado momento, ele parece pessimista ao alheio espectador, contudo, se for reparado com atenção, Zé é um humorado anarquista.
Naquela manhã de domingo, que o sol estava em paz com a chuva, encontrei-o como de costume, na Praça Olinto Leone, lendo um dos semanários da cidade itabunense:
- E aí Zé, tudo bem?
- Para alguns, sim! – pensei com os meus botões: “vem chumbo grosso”, e, cutuquei:
- Mas, lhe falta o quê? Filhos formados, esposa dedicada, netos encaminhados, e, tu ainda gozas duma baita saúde...
- Meu filho, eu não penso em mim, estou com 77 anos de vida, mas num país que grassa a violência e a impunidade, aposentado vive numa pendenga de dar pena, moleque de barba e bigode é protegido pelo ECA, médico mata paciente que não tem plano de saúde, político corrupto não vai pra cadeia e homem casa com homem no papel, não posso lhe dizer que tá tudo bem!
- Zé, o mundo muda, são as circunstâncias, temos que aprender conviver com os novos tempos ou enterramos a cabeça na areia como avestruz!
- Meu filho, eu sei que a única realidade é a mudança... O velho Protágoras Já dizia que não tomamos banho duas vezes na mesma água de um rio, porém, entre o bem e o mal, temos que escolher o bem. Se nós não somos agentes de uma boa mudança o mal prosperará, é o que queremos?
- Não! – contudo, contemporizei:
- Nem tudo é ruim... Não se deve comparar as expectativas de vida, hoje, com as expectativas de vida dos nossos avós. Em tempos remotos, não havia água na torneira, fogão com gás liquefeito, luz elétrica, geladeira, metrô, ultrassom, tomografia, computador, internet... – fui interrompido com sua risada:
-Ah, ah, ah!!! – não gostei:
- Qual foi a graça!?
- Tu enxergas como animal de carroça!
- Como assim!?
- O burro de carroça enxerga pela viseira, não vê o perigo ao lado. Muita gente vê, somente, os fumos do progresso, e, não enxerga a fumaça que entra pelo seu corpo e intoxica-lhe os pulmões e os olhos – continuou:
- Ninguém é insano para não reconhecer o avanço de ciência e da tecnologia, mas a que preço? Não precisa me responder, pois lhe direi o custo de todo esse avanço: arsenal nuclear capaz de destruir a humanidade muitas vezes, gados e aves bombadas de hormônios para crescerem e engordar antes do tempo, cultivo de frutos e verduras com agrotóxicos, armas biológicas, armas químicas, destruição da flora, destruição da fauna e a poluição dos rios, o reflexo de tudo isto, são as endemias, as epidemias e os sinistros da natureza. Mas, existe um mal maior: a corrosão do caráter humano, o homem se tornou cada vez mais corrupto e cínico... – não o deixei continuar:
- Meu caro Zé, seria uma discussão estéril se fosse contra-argumentar, mas lhe responder o quê? Não iremos mudar o curso da história, além disto, hoje, o dia promete e não quero encher a minha cabeça de caraminholas. Quando lhe vi, pensei: “vou bater um papo gostoso e bem humorado com o meu amigo Zé”, porém, o meu velho Zé neste dia bonito de descanso, é mar que não está pra peixe!...
- Meu filho, nem sempre o humor é a nossa disposição de espírito, às vezes, a realidade nos embrutece e nos deixa pessimista, principalmente, quando se tem um senso crítico aguçado, todavia, não me deixo levar sempre pelo pessimismo, afinal, estamos aqui de passagem e aprendi ao longo dos anos, correr a favor dos ventos, bronca é arma de trouxa!
- Meu velho, é assim que se fala!
- Não me chame de velho, pois velho é molambo que se joga no lixo!
- Zé, idoso é sinônimo de velho, quando lhe chamo de “meu velho”, não é para lhe depreciar, mas uma maneira carinhosa e possessiva de chamar o amigo, então, direi doravante: “O Zé da melhor idade”. Tá certo?
- Desculpe-me Fred, acho que exagerei... Hoje não é o meu dia, porém, prefiro o tratamento de “idoso”. Não sei quem inventou que a idade do diabetes, da hipertensão, do mal de Alzheimer, do Parkinson, da osteoporose, e, por aí afora, seja chamado de “terceira idade” ou “melhor idade”, seria melhor, que fosse tratado de “pior idade” ou “última idade”. Se soubesse quem teve essa brilhante ideia, iria mandá-lo pra ser implodido pelas bombas de Sadan Hussein!
- Zé, Sadan Hussein morreu, agora, o Iraque é outro governo!
- Morreu!?
- Não soube?
- É o mal da velhice... Então, mandaria o infeliz pra aquele maluco que ameaça despejar bomba nos Estados Unidos!
- Quem?
- O Cara da Coréia do Norte!
- Pyongyang?
- Acho que é esse Pyongyang, pois mandaria quem inventou esse desatino de “melhor idade” pra lá! – contemporizei:
- Zé, a velhice é o estado da matéria em decadência. Entretanto, é ao longo da maturidade que se adquire experiência e sabedoria. O adolescente é um “aborrecente”, o jovem é insatisfeito com o mundo, um revolucionário, quer a todo custo transformar o seu status quo, o cinquentão se acomoda e deixa a vida lhe levar, mas a velhice é o equilíbrio e a cristalização de tudo isso, portanto, a idade da experiência e sabedoria!
-Fred, é necessário fazer uma reflexão na leitura dos livros, tudo é relativo. Não se mede o conhecimento pela idade. A história da humanidade está cheia de feitos de gente jovem. Claro que a idade acumula experiência, mas não sabedoria, tem tanto velho estúpido, concorda comigo?
-Sim!
Naquele dia de domingo, não encontrei o velho Zé humorado, mas valeu o encontro.

Autor: Rilvan Batista de Santana
Licença: Creative Commons
Rilvan Santana
Enviado por Rilvan Santana em 24/04/2013
Alterado em 24/04/2013


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Imagem de cabeçalho: Sergiu Bacioiu/flickr