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A face obscura do homem - Pedro Marques (Capítulo 29)

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Pedro Marques



Chegou a Itabuna no final de maio de 1958, depois de um mês no Sul do país e uma parada no Rio de Janeiro. Chegou à cidade numa Quarta-feira e a primeira que fez foi se acomodar no “Hotel Portugal”, no dia seguinte, foi ao escritório de doutor José Maria, mas não o encontrou – estava numa das fazendas.
Aproveitou o final de semana e a ausência do advogado, por conta própria, começou esmiuçar o crime ou suicídio da mulher do coronel Honório Ladaró, já que a missão de Apolinário Gaiardoni estava parcialmente solucionada não obstante algumas interrogações sem resposta, porém, com mais alguns elementos, fecharia o caso.
Esteve com Honório Ladaró e conversou com as serviçais de sua casa. Conversou com o delegado e alguns investigadores interessados e havia muita gente interessada desde que o coronel estabeleceu um prêmio polpudo para quem primeiro solucionasse o enigma da morte de Rita.
Foi ouvindo uma palavra aqui, outra acolá, levantou à vida pregressa de Rita, sua religiosidade, as amizades mais chegadas, o apego aos filhos, sua idade, a idade do coronel Honório Ladaró e seu apego mais às suas fazendas do que sua mulher. Sem bazófia, sem chamar a atenção de ninguém, mas metódico, profissional, formou em poucas horas um juízo quase perfeito sobre o caso Rita Ladaró que com mais alguns contatos, colocaria o criminoso na cadeia, por cautela, poupou tecer comentário quando encontrou o casal José Maria:
- Que prazer lhe rever meu Sherlock Holmes – José Maria era efusivo de natureza, deu-lhe um abraço aconchegante e encheu-lhe de perguntas:
- Quando chegou? Gostou da viagem? Quantos dias você vai ficar em Itabuna? Nunca mais me deu notícias?...
Pedro Marques, calmamente, sem atropelo –aprendera no exercício da profissão de detetive – foi dando-lhe as respostas:
- Cheguei faz uma semana. Se eu gostei da viagem? Claro. Não sei ainda o tempo da minha estada nesta princesinha do Sul da Bahia, mas volto logo assim que der por encerrado o meu trabalho. Por conta própria, fiz algumas investidas no caso da mulher do coronel Ladaró... – José Maria se interessou e tentou puxar o ex-colega de faculdade para biblioteca, mas Pedro Marques o deteve com jeito:
- Deixe-me tomar fôlego homem! – brincou:
- Dona Clô, o seu marido é muito apressado! Parece que nasceu de sete meses?...
- Não, doutor Pedro, ele sempre foi assim, vive o dia de hoje como se fosse o último!...
Pedro Marques voltou ao carro, combinou com o taxista o seu retorno, pegou alguns embrulhos no banco traseiro do automóvel e adentrou, novamente, na mansão, desta vez encontrou a família junta, sem conversa de trabalho, foi entregando os presentes a cada filho, por último, ao casal José Maria:
- Talita, tu vais ficar ainda mais linda com essa volta de ouro, última moda das mulheres cariocas! – recebeu um abraço e um beijo de agradecimento da primogênita...
- Samuel, como tu és um homem, para não esquecer o teu horário de encontro com a namorada, trouxe para ti um bonito “Mido”! - sem esperar agradecimento:
- Júnior, para que tu não fiques com inveja de Samuel, trouxe para ti, também, um relógio! – em seguida:
- Eu sei que a bolsa é o último no chique das madames, por isto, dona Clô, trouxe-te esta linda bolsa de couro de jacaré! – por último, José Maria:
- Meu prezado José Maria, para que partilhe do teu presente, trouxe um litro de whisky e um “Château Hant Brion”, safra... – foi interrompido por dona Clô:
- Château Hant Brion!?
- Sim. Já tomou?
- Não!!!
Não existe dureza de coração que não se renda a um gesto de carinho. A família Andrada não precisava de presente, porém, o gesto de Pedro Marques deixou a família mais atenciosa e mais prestativa, com exceção de José Maria que era amizade antiga, até dona Clô se rendeu aos obséquios do detetive e advogado. No início, ela ficou espinhada quando Pedro Marques lhe perguntou se já tinha tomado o vinho Château Hant Brion, depois mandou a cisma passear.
O almoço foi servido. O detetive falou das viagens que tinha feito no Sul e Sudeste do país. Falou das praias da cidade do Rio de Janeiro, do carnaval, das mulatas, do humor carioca, das principais cidades de Santa Catarina, do Rio Grande do Sul, em particular, Caxias do Sul e Porto Alegre. Exaltou a limpeza dessas cidades, o índice de desenvolvimento humano, o urbanismo e a cultura influenciada na imigração europeia, principalmente, os alemães, os italianos e os poloneses.
Talita queria saber mais e não saciava sua curiosidade: jurou que antes de conhecer o estrangeiro, gostaria de conhecer as coisas boas do seu país. Samuel aproveitou para dizer ao pai que gostaria de estudar e trabalhar em São Paulo, único lugar do Brasil onde não havia miséria. Júnior discordou dos irmãos, prometeu ao pai que quando terminasse os seus estudos de agronomia em Cruz das Almas, iria tomar conta das fazendas.
A conversa ia solta quando Dr. José Maria com jeito dispensou a mulher e os filhos e puxou, discretamente, Pedro Marques para biblioteca. Ele estava cioso de informações sobre a missão que confiara ao seu colega detetive, suas cartas eram lacônicas e cheias de metáforas, portanto, nada melhor do que “tête-à-tête”, olho no olho, perguntas e respostas, carta é unilateral, às vezes, técnicas, que o receptor fica a ver navio.
Assim que adentraram na biblioteca, José Maria não deu fôlego ao seu amigo de faculdade, foi necessário Pedro Marque discipliná-lo:
- Calma, meu amigo, uma coisa de cada vez, temos o tempo todo para o relato!
- Eu sei, mas me diga logo, o padre é um bandido conforme sua carta? – exigiu José Maria.
- Não!
- Mas, você escreveu...
- Eu sei o que escrevi, fiz isso para que você não desse a língua nos dentes, porém, existe ainda pergunta sem resposta!
- Então, desembuche homem!
- Qual ou quais?
- Se Apolinário Gaiardoni é Apolinário Gaiardoni! – José Maria se impacientou:
- Mas filho de Deus, mais de um mês viajando, escarafunchado a vida desse homem, você vem me dizer isso!!!
- Calma, José Maria, é que surgiu um sósia e uma morte em um navio, se esse homem é impostor, não temos provas para lhe desmascarar, a coisa foi bem articulada!
-Não entendi bulhufas: sósia, morte no navio...
- É uma longa história, dê-me tempo, vou esclarecer...
Relatou que de posse das informações que lhe havia dado, viajou para Santa Catarina, bateu na porta de várias dioceses, conheceu vários parentes e amigos do sacerdote, todos confirmaram sua vinda para diocese de Ilhéus e ratificaram reconhecê-lo nas fotos dos jornais...
- Então, meu caro amigo, missão cumprida!
- Não de tudo, seus irmãos têm estranhado alguns detalhes de suas cartas!
- Como?
- Na assinatura, que o padre não gostava de escrever carta datilografada e alguns lapsos de família... – João Maria se exultou:
- Então, meu amigo, a missão está incompleta!?
- Sim. Por isso, fui a Caxias do Sul e a Porto Alegre, buscar informações sobre Hans Manfred Spitznamen!
- Esse Hans é o quê?
- Hans é o sósia que lhe falei de Gaiardoni, mas morreu de infarto nessa viagem do navio!
- E, daí?
- Pode não ter sido Hans que morreu e sim o próprio Gaiardoni!
- E tomou o seu lugar só por ser sósia? Sua máscara cairia na primeira missa... Não existe lógica!
- Não existe lógica? Nesse caso, sim! – completou:
-Então, analisemos: Hans, sósia, advogado, coroinha, fez seminário, mulherengo, não se consagrou por não aceitar o celibato... – José Maria não se conteve, deu um murro na mesa:
- Uai!... Claro, tudo se encaixa, porém, a Igreja Católica daria seu beneplácito ao perfeito substituto, ele não seria denunciado por falsidade ideológica, os fins justificam os meios, afinal, o homem só faltou se consagrar, se formar, é advogado...
- Claro, meu amigo José Maria, porém, existe um conjunto de suposições que se comprovadas, ele iria pra cadeia!
- Por exemplo?
- Um crime!
- Não foi infarto?
- Existe um atestado de óbito do médico do navio!
- Então?...
- É estranho um rapaz novo, porte atlético, “vendendo saúde” no dizer dos seus conterrâneos de Caxias do Sul morrer de infarto! – continuou:
- Além disto, Apolinário trouxe uma fortuna em espécie para Diocese de Ilhéus!
- Esse dinheiro foi entregue ao bispo de Ilhéus?
- Não sei!
- Meu caro Sherlock Homes, peças não se encaixam nesse tabuleiro de xadrez. Entendo que como detetive, você explore todas as hipóteses, mas não acredito que esse rapaz, esse Hans Manfred tenha tomado o lugar de Apolinário Gaiardoni, por vários motivos... – discriminou os motivos:
- Um advogado tem mais futuro nesta terra do que um padre; um atleta não vai viver em contrição permanente e o padre que conheço é tradicional, acho que nunca cantou uma de nossas moças de Itabuna, e, se o dinheiro foi entregue na diocese, toda sua teoria cai por terra, então, temos aqui não o Hans, mas o verdadeiro Apolinário!
- José Maria, você é uma pessoa boníssima, acredita no ser humano sem reserva, porém, o mundo é formado por atores e canastrões, por isto, não se pode confiar de todo na aparência, “o homem é a medida de todas as coisas, das que são enquanto são e das que não são enquanto não são”, ou seja, nem sempre a primeira impressão é verdadeira, cada um de nós representa um papel e os atores são divinos...
- O que você quer dizer com essa retórica?
- Que evitemos conceitos prontos... Hans ou Apolinário pode estar representando tão bem que é difícil saber se Hans é Hans ou se Gaiardoni é Gaiardoni!
- Quer dizer que estamos malhando em ferro frio, não é?
- Eu sei que tu estás ansioso, não é pra menos, mas é cedo para festejar ou baixar a guarda!
- Estou ansioso é verdade, mas a guarda será baixada com a verdade, não meia verdade! – quis saber mais:
- Foi discreto na mesa, mas...
- O caso Rita?
- Sim. Sei que andou xeretando aqui e acolá, o quê descobriu?
- Meu caro José Maria, as coisas não são tão fáceis assim... Eu juntei alguns elementos, todavia, não lhe posso adiantar o nome do criminoso. Só posso lhe dizer que foi uma mente criminosa de alta periculosidade, por isto, seja econômico no tratamento desse assunto e do padre, é perigoso!...
- Quer me assustar!?
- Não!
- Dê-me um bom motivo para esse cuidado!
- Criminoso inteligente!...
Rilvan Santana
Enviado por Rilvan Santana em 24/09/2012


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