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A face obscura do homem - A enchente (Capítulo 27)

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A enchente

As águas do rio Cachoeira desciam aos borbotões em direção ao mar de Ilhéus levando animais, toras de madeira, baronesas, árvores caídas, a força da água impressionava, em certos trechos, as águas passavam pelas pedras numa velocidade que nenhum vivente seria capaz de manter uma canoa navegável, porém, se não fosse lúgubre, não causasse tanto dano, deixando populações ribeirinhas sem eira nem beira, numa miséria de chorar qualquer coração endurecido, dava-se gosto ver, a revolta da natureza com a agressão do homem.
Os lugares baixos da cidade foram invadidos pelas águas do rio Cachoeira: Bananeira, Mangabinha, Rua da Jaqueira, Laranjeiras, Miguel Calmon, Sete de Setembro e Rua da Areia, esses lugares foram os mais atingidos, com exceção da Praça Adami que naquela época, era um pequeno monte com mais de 3 m de altura onde muita gente se apinhava com medo da água que avançava.
As casas de bloco e os barracos eram tragados pelo rio por uma força natural como se fossem de papelão. Nada que a enchente do rio Cachoeira não arrastasse: casas, pontes, toras de madeira, sofás, camas e outros objetos, mas o que chamava mais a atenção era a lâmina de baronesa que se formava por quilômetros com o rio seco e quando a enchente ocorria, a esteira de baronesa deslizava na água, uniforme, suave e bela, levando em cima de suas folhas e bulbos, galináceos, cobras, lavandeiras, garças e até caititus.
No infortúnio é que se descobre a grandeza da alma humana, não faltava voluntário para socorrer algum sobrevivente que desesperado que se agarrava à comeeira de uma casa submersa ou algum náufrago que na agonia clamava por socorro, geralmente, com um dos braços estendido e dando os últimos nados de cansado. Botes inflados e canoas deslizavam nas águas em lugares de ruas submersas procurando gente desabrigada.
Essa enchente de 1954 foi uma enchente menor do que a enchente de 1914 e menor ainda do que a enchente de 1967, mas de igual valor destrutivo, não houve registro histórico, sua transmissão foi oral, das pessoas sofridas, das pessoas que perderam o pouco que tinham, foi uma enchente suis generis, sem as chuvas torrenciais das outras, pegou todos os habitantes citadinos de surpresa, é que as chuvas torrenciais
começaram na Serra de Itaraca, município de Vitória da Conquista e abundaram nas cabeceiras dos rios Salgado e Colônia, e, desaguaram no Rio Cachoeira de Itabuna.
O rio Cachoeira pouco e pouco foi subindo, ultrapassando margens, penetrando nas casas ribeirinhas, tomando ruas, formando lagos e outros rios, num quadro de cenas horríveis, dantescas, destruindo sonhos e aumentando a leva de miseráveis da cidade.
Porém, a molecada nem estava aí, brincava de picula, nadava (as águas do rio Cachoeira nem eram tão poluídas), soltava barquinhos de papel nas correntezas, enfim, a molecada pintava o sete...
Um parêntesis:
Algum leitor exigente irá perguntar o que tem o advogado José Maria ou dona Clô com essa história de enchente? Em que vai contribuir essa história de enchente na trama em que o padre Apolinário Gaiardoni é o principal suspeito do crime? Sim e não! Sim, porque se conhece os traços psicológicos do personagem através de suas atitudes, de sua vida privada e social e nessa enchente, José Maria mostra o seu lado filantrópico, solidário, por isto, tornou-se tão querido e endeusado na comunidade itabunense.
Fecha parêntesis.
Naquela época, Apolinário Gaiardoni, residia há um ano em Itabuna, pouco se movimentou para socorrer os desabrigados, argumentou que sua igreja não tinha dinheiro, o dízimo estava em baixa... Não disponibilizou a casa do pároco para receber alguns desabrigados, não fez campanha de roupas e alimentos para vestir e matar a fome daqueles miseráveis, para não lhe ser injusto, é necessário que se diga que fez alguns pedidos de somenos importância ao poder público.
Por outro lado, doutor José Maria disponibilizou alguns carros da fazenda para transportar o que restou de móveis e utensílios de cozinha, encheu os armazéns de cacau de desabrigados, transportou os doentes em seu carro de passeio para o hospital, doou roupas, alimentos, remédios e colchões, não como se desse esmola, homiziado em seu gabinete, delegando aos prepostos o cumprimento dessas tarefas, mas participou in loco de todas essas ações, porém, sua solidariedade foi digna de ser contada pra seus filhos e netos quando chegou numa casa de desabrigados e encontrou uma mulher chorando de dar dó:
- Onde vou abrigar meus 12 filhos, senhor!?
- Alguém vai ter piedade da senhora!...
- Que Deus lhe ouça, senhor!
- Não sei se Ele me ouvirá, mas eu lhe ouço!
Uma semana depois, a mulher recebeu uma casa com tudo que o rio havia levado...
Rilvan Santana
Enviado por Rilvan Santana em 24/09/2012


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Imagem de cabeçalho: Sergiu Bacioiu/flickr