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A face obscura do homem - O salário do pecado é a morte (Capitulo 20)

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O salário do pecado é a morte



A igreja estava lotada. Não se falava em outra coisa a não ser no crime da Maria Braúna. Maria Braúna não tinha importância econômica ou socialite, mas era conhecida pelos grandalhões do cacau e dos abastados comerciantes de Itabuna, pelos exímios serviços de lavadeira que prestava para essa gente. Era uma morena de uns 45 anos, forte como uma baraúna e bonita como suas flores amarelas. Ela morava na Bananeira, um bairro ribeirinho, formado por um amontoado de barracos e casas de tijolo sem reboco.
Um crime de infidelidade conjugal, comum naquela época de machões, de certo modo, amparado pelas brechas da lei e desculpado pela sociedade, se não tivesse sido Maria Braúna, não teria havido nenhuma repercussão, principalmente, não teria havido o choro e a solidariedade das mulheres de bem, das mulheres de bens e das raparigas. Houve, inclusive, um pálido manifesto dessas senhoras na Avenida J.J. Seabra.
Soube-se depois que Maria Braúna era amancebada com um vaqueiro e lhe deu oito filhos, porém, em decorrência do seu trabalho, o vaqueiro passava dias sem vê-la e doído de saudade dos filhos, no entanto, quando voltava pra casa, cumpria como ninguém o seu dever de pai e de amancebado.
Todos os vizinhos queixaram a morte de Maria Braúna, mas lamentaram, também, o infortúnio do nego Zé, é que Maria e Zé eram benquistos no bairro. Eles eram solidários, prestativos, e, figurinhas indispensáveis nas festas juninas e nos forrós dos compadres e das comadres de finais de semana.
Muitos não entendiam e alguns duvidavam que “dona” Maria Braúna tivesse se deitado com João Freire, conhecido como de “Boca de Ouro”, mas o diacho que ambos foram mortos nus na mesma cama, os fatos e as evidências dispensavam testemunhas de acusação, bastavam às autoridades do júri, as declarações dos peritos e da polícia que fizeram o levantamento cadavérico, não havia como negar a motivação do crime.
O crime teve versões diversas, alguns diziam que Zé foi avisado da traição de sua mulher por um bilhete anônimo, outros, que “Boca de Ouro” andou se gabando nos botecos de cachaça que fazia algum tempo que montava na morena, portanto, Zé estava com os cornos crescidos, mas a versão que mais se sustentava era a versão do copo: o nego Zé estava na fazenda há alguns dias, Maria Braúna sentiu-se só e foi convidada para uma festa na casa de uns conhecidos, lá, encontrou-se com “Boca de Ouro” que não lhe deixou em paz enquanto ela não lhe permitiu uma dança, uma dança puxou outra, até altas horas da noite e nos intervalos alguns rabos-de-galo. Maria Braúna serenada, cheia de goró, aceitou os préstimos de “Boca de Ouro” lhe levar para casa, não se sabe qual foi o artifício sedutor que ele usou pra lhe levar pra cama, sabe-se que a levou e morreram de braços dados.
A igreja estava superlotada, o padre Apolinário Gaiardoni mais eloquente que nunca, pegou o bonde da oportunidade de Maria Braúna e desceu o malho nos homens da terra, principalmente, os burareiros, os grandes comerciantes e os coronéis do cacau sobre a cultura de infidelidade masculina, somente os homens tinham esse direito absurdo, embora não existisse o direito escrito de matar a mulher infiel, as autoridades e a sociedade faziam vista grossa para os criminosos de mulheres adúlteras.
Apolinário Gaiardoni invocou o princípio da igualdade: que a mulher tinha o mesmo direito do homem, afinal, os tempos eram outros, que não se vivia mais no tempo do homem de Neandertal, mas no meado do Século XX, se o casamento não desse certo que se usasse o instrumento jurídico do desquite e cada um seguisse o seu destino, que o homem não substituísse os sentimentos de amor pelos instintos irracionais da paixão!...
O padre não usou de eufemismo com nego Zé, disse à assembleia que o criminoso foi um desalmado, um egoísta, um sanguinário, um elemento de sentimentos primitivos que além de tirar duas vidas, deixou oito filhos sem o carinho e sem a proteção da mãe, que Maria Braúna não era adúltera, mas uma mulher trabalhadeira, mãe insubstituível, que tinha sido vítima de bebedeira e apetites sexuais reprimidos pela ausência constante do amásio, e, quem garantia ali – apontou para os homens da assembleia – que o motivo de sua ausência constante não fosse outra mulher, lá, na fazenda?...
Apolinário Gaiardoni justificou que não estava fazendo a apologia da mulher adúltera, que Jesus Cristo foi duro quando disse: “Ouvistes o que foi dito: Não adulterarás. Eu, porém, vos digo que todo aquele que olhar para uma mulher para cobiçá-la já em seu coração cometeu adultério com ela” (Mateus 5:27-28). Porém, fez justiça quando os escribas e fariseus trouxeram uma mulher flagrada em adultério para ser apedrejada, segundo a lei de Moisés, todavia, escribas e fariseus não contavam com a sabedoria do Mestre: “Aquele que dentre vós estiver sem pecado seja o primeiro que lhe atire pedra”. E, voltando-se para os homens, o padre pergunta:
- Os senhores sabem o que ocorreu? Acredito que todos sabem o que ocorreu: acusados pela própria consciência, eles foram se retirando um a um, a começar pelos mais velhos. A mulher não foi apedrejada e foi perdoada por Jesus Cristo com a recomendação que não a pecasse mais.
Quase todos estavam fascinados com a palavra firme do padre Apolinário na defesa da lavadeira Maria Braúna, por extensão, na defesa da mulher, para ele, a sociedade deveria acordar de sua letargia, de sua insensibilidade e do seu desinteresse contra essas barbáries, cometidas com o falso argumento de defesa da honra. Disse que nenhum criminoso de mulher adúltera ficava na cadeia, ou melhor, que não havia notícia que alguém tivesse sido levado a júri por esse tipo de homicídio, que esses crimes não passavam da escrivaninha do delegado etc., etc.
A zoada de uma mosca quebraria o silêncio da igreja, todos estavam voltados para Apolinário Gaiardoni, cada palavra sua era triturada e assimilada, parecia que dali em diante a sociedade itabunense e o Sul da Bahia e o restante do país teriam a civilização de suecos, que a região não seria mais uma terra de ninguém, quando uma voz arrastada e firme, quebra esse estado de nirvana:
- Seu padre me permite uma palavrinha!? – todos, num instante, se voltaram para o homem que num gesto incomum ousou interromper a fala do sacerdote e surpresa maior, é que não era qualquer Zé ninguém, mas o temido por uns e idolatrado por outros, o coronel Honório Ladaró!...
-Fique à vontade coronel!
- O senhor vai me desculpar... bonito o seu palavrório... o senhor seria um bom advogado se não fosse padre... são coisas de Deus... não irei discutir – pigarreou:
- Eu cheguei aqui com a mão na frente e outra atrás... desmatei mata... plantei cacau... tive que matar pra não ser morto... não me envergonho não, senhor padre... que Deus me perdoe!... – completou:
- O nego Zé teve razão matar os dois... o senhor me desculpe... é a lei da terra e o senhor não vai mudar com sua boniteza de sabedoria... eu faria o mesmo que nego Zé... a minha santinha não me dará esse desgosto... o senhor conhece sua devoção... ela cuida de mim e dos moleques com dedicação... mas se fizer igual a Maria Braúna, o meu amor é menor do que meu ódio!... – não completou a fala (não houve necessidade), foi aplaudido e abraçado até pelas mulheres.
O juízo dos costumes arraigados é maior do que a lógica da palavra...
Rilvan Santana
Enviado por Rilvan Santana em 23/09/2012


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Imagem de cabeçalho: Sergiu Bacioiu/flickr