Textos


A face obscura do homem - Ano de 1939 (Capítulo 8)

8

Ano de 1939


Os tropeiros da fazenda Boa Hora desciam em direção a Ilhéus. Manuelzão, chefe do grupo, berrava com os camaradas para que cuidassem dos animais, escolhessem terreno que tivesse menos lama (havia chovido dois dias antes), mais enxuto, para que cavalos e éguas não ficassem atolados e sofressem acidentes com o peso dos sacos de cacau. A égua madrinha ia adiante com o cincerro chocalhando ao pescoço e puxava a tropa com imponência como se conhecesse cada palmo do terreno, aos tropeiros restavam escolher o trilho bom.
Manuelzão levava o cacau do boqueirão vizinho à fazenda do coronel Manduca Castro para o armazém de Água Preta e de lá para Ilhéus e entregue nos depósitos dos Kaufman. Homem de confiança de doutor José Maria, seguia à risca suas ordens e a ordem foi que esse cacau chegasse ao destino antes de qualquer chuvarada.
Sua relação com o patrão era do tempo de adolescentes. O seu pai tinha sido capataz do coronel Teodoro Alves, pai de doutor José Maria, quando o filho do coronel entrava de férias escolares, corria para fazenda Boa Hora. Embora o coronel tivesse muitas fazendas, o adolescente José Maria preferia passar as férias com o seu companheiro de peraltices e travessuras, o comprido Manuelzão, o filho único do capataz.
Moços, eles se encontravam em final de ano, é que José Maria já estudava Direito em Salvador e a distância dificultava o ócio na fazenda. Porém, quando o “patrãozinho” aparecia, agora, ambos de barba e bigode, além das pescarias e dos forrós, eles montavam a cavalo e iam curtir no “Buraco da Jia”, zona de meretrício de Água Preta, até o dia amanhecer.
Eles não eram de briga. O estudante de Direito se comprazia em dançar, tomar whiskys ou cerveja e quando faltavam ambos, descia na goela, uma cachacinha com limão e mel. Porém, quando algum intruso cismava com o “doutorzinho”, Manuelzão, as prostitutas e os camaradas da fazenda caiam em cima do pobre diabo.
Manuelzão nunca gostou de estudar, fez até o 4º. Ano primário por insistência do seu pai e do coronel, este, queria vê-lo doutor, prometeu-lhe custear os estudos na capital, mas esbarrava na má vontade e falta de gosto aos livros do moleque. Manuelzão gostava mesmo era de se escanchar num cavalo, colher cacau, tomar o mel de cacau, jogar uma pelada nos finais de semana, mergulhar no rio para fisgar acari, pegar traíra e tilápia de rede, e, nas noites de final de semana, trocar umbigadas com as negras do “Buraco da Jia”.
Tivera a promessa de ajuda do “patrãozinho”: “Manuel se o meu pai morrer primeiro, eu irei lhe dar umas terras para você plantar cacau”, promessa feita, promessa cumprida, assim que o coronel Teodoro morreu, doutor José Maria assumiu os negócios da família e um dos seus primeiros atos foi comprar umas terras perto da Boa Hora e passar em nome de Manuelzão, deu-lhe independência e autoestima, como reconhecimento, ele prometeu ao “patrãozinho” que ia cuidar do seu futuro, mas nunca ia lhe deixar. Não quis ocupar o lugar do seu pai, também falecido, ficou como tropeiro principal da fazenda.
Seria capaz tudo para atender ao doutor José Maria, mesmo que pusesse em risco sua vida. Sabia que havia uma questão de limite com as terras do coronel Manduca que se arrastava desde o coronel Teodoro, pouca coisa, uma tira de uns 10 hectares, um nada para o tamanho das fazendas de ambos os coronéis do cacau, mas muita coisa para gerar uma contenda.
A justiça já tinha decidido a favor de doutor José Maria, porém, o coronel Manduca não se conformou, alegava tráfico de influência, que o advogado conhecia do juiz ao oficial de justiça, que tinha usado tráfico de influência na sentença, por isto, jurou resolver a questão ao seu modo, desta data em diante, aumentou-se o efetivo de cabras na Boa Hora, a região conhecia a fama má do coronel Manduca.
Homem desalmado, que tinha construído um latifúndio produtivo se apropriando das terras dos pequenos posseiros a guisa de nada, que usava o caxixe, que usava, principalmente, a tática de coerção e intimidação, porém, essa tática não daria certo nem com o coronel Teodoro, menos ainda com o seu filho, pois, pai e filho não eram de briga, mas eram turrões quando a ocasião exigia e o pretexto alegado pelo doutor José Maria era que se cedesse no pouco, teria que ceder no muito às ambições sem limite do coronel Manduca, ele sempre ira querer mais...
Manuelzão vinha mastigando essas reminiscências, quando alguns metros de distância da tropa, por trás de um montículo surgem pistoleiros atirando em direção aos tropeiros, um deles é atingido no peito e cai como uma jaca do cavalo, os demais, num instinto aguçado de sobrevivência se jogam no chão e procuram se defender como pode atrás das árvores, os animais fogem da linha de tiro e se embrenham nos cacauais, o tiroteio começa.
O tiro que derrubou o negro Joaquim, seria para Manuelzão, mas por segundos, ele havia saído da tropa para mijar, foi sua salvaguarda, além de evitar uma carnificina, ele pode, rastreando, surpreender os jagunços por detrás do monte e forçá-los se expor para alvo dos clavinotes dos seus companheiros. Salvou-lhes, também, a escuridão da mata fechada, embora fosse ainda tarde.
Quando Manuelzão ouviu o primeiro tiro, de maneira prudente, colocou-se à retaguarda dos jagunços, aí, ele forçou-lhes o movimento e a vulnerabilidade. Agora, os tropeiros refeitos do susto, protegidos pelos troncos das árvores derribadas ou outro obstáculo qualquer, tornaram-se invulneráveis, e, à medida que o clavinote de Manuelzão cuspia fogo, as baixas dos jagunços se sucediam, quando restou um jagunço, o chefe dos tropeiros, rastejando como cobra, com cuidado necessário, surpreende o último jagunço e toma-lhe a arma:
- Companheiros, parem de atirar e venham até aqui!!! – o fogo foi suspenso...
O cabra foi manietado e amarrado no tronco de um cacaueiro. Os tropeiros mais afoitos queriam lhe dar cabo, queriam vingança pela morte do negro Joaquim, porém, foram arrefecidos pela palavra firme do seu chefe:
- É covardia matar alguém com as mãos amarradas... Além disto, ele será útil ao patrão vivo e não morto!
O dia amanhecia quando eles recuperaram todos os animais, inclusive, os sacos de cacau que foram atiçados fora enquanto os animais fugiam. Foi grande a matança: morreram 7 jagunços mais o negro Joaquim. O jagunço que sobrou deu na língua, disse a Manuelzão e aos demais que tinha sido obra do coronel Manduca, ele que havia contratado Zé Vermelho, famoso pistoleiro alagoano, para intimidar o dono da fazenda Boa Hora e tomar posse na raça do boqueirão.
A polícia de Ilhéus desceu às pressas para Água Preta e de lá pra Boa Hora. A segurança da fazenda foi reforçada. Doutor José Maria se fez presente, o coronel Manduca foi pego de surpresa e preso. Jogaram-lhe tanto processo em cima que seus advogados não conseguiram impedir dele descer para penitenciária de Salvador.
Dois anos depois, sentou-se, pela primeira vez, no banco dos réus, um coronel do cacau pelos crimes que praticou. Após réplicas e tréplicas dos advogados e da promotoria, o coronel Manduca Castro, ouviu do juiz, a sentença de 28 anos, 3 meses e 15 dias de prisão na penitenciária da capital, sem direito a sursis.
Rilvan Santana
Enviado por Rilvan Santana em 23/09/2012


Comentários


Imagem de cabeçalho: Sergiu Bacioiu/flickr