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A face obscura do homem: Ouro Achado - Capítulo VI

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Ouro Achado

A fazenda “Ouro Achado” era uma sesmaria. Quando o doutor José Maria a comprou, ela era menor, mas ele foi comprando fazendas menores e anexando às terras do “Ouro Achado”, assim, a fazenda ficou enorme, que se estendia do município de Itabuna até perto de Ilhéus dos dois lados do rio Cachoeira. O pessoal que toma conta da vida alheia afirmava que o nome “Ouro Achado”, devia-se ao fato do advogado ter comprado a propriedade por uma bagatela, a preço de banana, certo que havia exagero, mas a verdade é que o doutor José Maria não dava ponto sem nó...
Promessa feita, promessa cumprida, demorou menos de um mês que dona Clô disse ao marido que o padre gostaria de conhecer uma fazenda de cacau, para que o sacerdote tivesse seu desejo satisfeito. Não foi fácil o casal convencê-lo da necessidade dele se despojar da batina, comprida e escura, para se embrenhar nos cacauais e nas matas, escanchado em burros ou em mulas, até a sede principal da fazenda.
A família Andrada usava um Jeep Willys com tração para viagens das roças. O Jeep era o carro recomendado para estradas de chão, porém, imprestável em certas situações, principalmente, quando chovia muito, as valetas e a lama deixavam as estradas intransitáveis e perigosas, então, os fazendeiros socorriam-se dos velhos e seguros animais para transporte de pessoal e de cacau.
Mas, a viagem ocorreu sem percalços, o carro chegou a menos de 2 quilômetros da casa grande, onde alguns moleques já aguardavam os donos da fazenda “Ouro Achado” e o seu convidado, com vários e cuidados animais.
Apolinário Gaiardoni observava cada detalhe, parecia um menino deslumbrado com o primeiro brinquedo, nada lhe escapava aos ouvidos e aos olhos: uma cobra em ziguezague que passava no caminho, o canto do bem-te-vi, o canto do curió, o canto do guriatã, o calango que passava em disparada em cima das folhas secas, provocando susto na comitiva, a preguiça pendurada na árvore, os pés de cacau carregados, tudo era novidade para o sacerdote.
A sede da fazenda ficava num terreno elevado, numa chapada, embaixo, extensa planície onde os animais pastavam. O acesso era feito por uma estrada de paralelepípedo que ia até o passeio e entrava pelas laterais e avançava uns 10m no fundo, formando um grande retângulo, feito por exigência do proprietário para que não nascesse mato ao redor da casa. Não muito distante da sede, um pomar enchia de orgulho, pela variedade de frutas, dona Clô.
Outros luxos da sede eram a canalização de água que o proprietário fez duma nascente que ficava a menos de um quilômetro, um motor de luz que a deixava iluminada e uma grande capela, um oásis de conforto numa terra inóspita, privilégio de poucos.
Apolinário Gaiardoni recebeu no segundo dia que chegou: um par de botas cano alto, um chapéu de abas largas, calça de cáqui e camisa de brim manga comprida, tudo para que pudesse entrar na mata e nas roças de cacau sem possibilidade de perigo, tudo assessorado pela prestimosa dona Clô...
Naquela manhã, ciceroneado pelo administrador da fazenda “Ouro Achado”, o padre, dona Clô e doutor José Maria, montados em belos animais, eles começam percorrer as diversas roças de cacau. Dona Clô recebia pálidos cumprimentos, cumprimentos reservados à patroa, enquanto o seu marido recebia efusivos abraços de bem querer, de amizade desinteressada e sincera.
Os camaradas não enxergavam no doutor José Maria um patrão, mas um sujeito afortunado igual, um sujeito sem pabulagem, um sujeito que se podia confiar e, que muitos camaradas não hesitariam arriscar sua vida se preciso fosse para salvá-lo.
Ele adentrava nas casas dos camaradas com tanta simpatia, abraçava os mais velhos, colocava os meninos no colo, distribuía presentes para garotada, socorria uma mãe num vestido ou num remédio, adiantava salário para alguma necessidade, estimulava a agricultura de sobrevivência, enfim, o trabalhador não lhe tinha queixa.
O padre Apolinário Gaiardoni ficou boquiaberto com a popularidade do seu anfitrião, ensaiou segui-lhe, mas não tinha jeito, não possuía o mesmo carisma do advogado, ademais, quando os peões sabiam que o homem era padre, a espontaneidade dava lugar à carolice e ao respeito exagerado, homens e mulheres pediam a benção do sacerdote com devoção.
Dona Clô promoveu o casamento de todos os amancebados da fazenda numa grande missa de domingo. Alguns camaradas recusaram, inicialmente, o convite, mas cederam aos argumentos da patroa: que o céu não recebia amasiado, que o concubinato era um grande pecado, que os filhos não poderiam ser batizados ou crismados na Santa Madre Igreja, que aproveitassem a estada do padre, que padre naquele fim de mundo era um sinal de Deus para remissão dos pecados etc., etc.
Naquela época não havia vassoura-de-bruxa, se alguém tirasse uma foto do alto, teria uma imagem fechada de cacaueiros de folhas verdes. As roças eram extensas florestas em que os trabalhadores podiam caminhar protegidos do sol, salvo as áreas cabrocadas. Ali e acolá se encontrava um ribeirão ou alguma nascente de água limpa.
Quando dava meio dia, o camarada abria o seu embornal embaixo de uma árvore frondosa e fazia sua refeição com jabá, carne de sol, toucinho, ovo, feijão e farinha, sem dispensar, antes da refeição, uma talagada de cachaça para lhe abrir o apetite. Após encher a pança, de ter comido e bebido a fartar, ele tirava uma sesta e retornava ao trabalho três quartos de hora depois.
Doutor José Maria não era ciumento, mas tinha por regra não confiar em ninguém, nem no amor nem nos negócios, lera quando jovem um conto oriental que nunca lhe saíra da cabeça. A história dizia que um pai, todos os dias, pegava o seu filho pequeno e o colocava sobre a mesa e pedia-lhe que pulasse e antes que o moleque se esborrachasse no chão, ele o pegava nos braços, certo dia, ele repetiu a ordem, porém, não o pegou, deixou que o pimpolho caísse e recomendou: “não confie em ninguém, nem mesmo no seu pai”. Por isto, ficou cismado de dois ou três gestos do padre e dona Clô, mas mordeu a língua, poderia ser chifre na cabeça de cavalo...
Os camaradas gostavam quando doutor José Maria estava na fazenda “Ouro Achado”, havia sempre clima de alegria, nos finais de semana, ele promovia: futebol, sinuca, pescaria, corrida de jegue, pau-de-sebo, mas o pessoal se amarrava mesmo era quando ele mandava buscar um sanfoneiro, aí o forró entrava pela noite e acabava no outro dia e ninguém sabia quem era o patrão ou o empregado, todos se misturavam no salão ao som da sanfona, da zabumba e do pandeiro. Se algum sujeito tomado pelo álcool saísse da linha, era logo dominado e levado pra casa.
Naquela manhã, o padre, dona Clô e o marido prosavam no alpendre da casa. Apolinário Gaiardoni estava mais leve e mais solto. Tudo era novidade: o cacau, o gado, os cavalos, as mulas, os burros, os jegues, as matas, a simplicidade dos camaradas, as nascentes de água limpa, a riqueza da fauna, as hortas dos trabalhadores e acima de tudo a filantropia dos donos da fazenda que repetia em agradecer. Tabaréu da cidade, ele teve ao longo da vida, pouco contato com roça, ignorava quase todas as coisas e o que sabia de zona rural, Apolinário Gaiardoni aprendera nos livros.
Dona Clô, reservada, introspectiva, naquela manhã, também, estava mais leve e mais solta, talvez, por já terem decidido o retorno para cidade. O doutor José Maria não se podia levar em conta, sempre estava de bem com a vida, se não fossem os seus compromissos comerciais e jurídicos, moraria na roça, gostava do cheiro de mato, principalmente, do cheiro de alfazema das caboclas. Naquele rincão, ele dispensara, somente, as casadas e as comprometidas. Não era ousado, porém, as morenas se insinuavam, então, ele ficava na casa do sem jeito...
Portanto, naquela manhã, todos estavam felizes, quando o dono da casa de chofre puxou conversa:
- Padre, quem é Jesus Cristo?
- O filho unigênito de Deus!
- Bem... Todos nós somos filhos de Deus pelo batismo de acordo as Escrituras Sagradas, porém, a minha dúvida é se Jesus Cristo é “Filho Único de Deus” ou um marco da História Universal?
- A fé me fez padre... Acredito que Jesus Cristo é “Filho Único de Deus e Redentor da humanidade”!
- Os judeus e os muçulmanos não pensam assim!
- Nós, cristãos, respeitamos judeus e muçulmanos, Maomé e Moisés tiveram um lugar especial na obra de Deus, mas Jesus Cristo foi o único que venceu a morte e não pecou...
- Acho que Jesus Cristo foi homem justo, o maior personagem da História Universal, mas têm coisas que contêm nos Evangelhos que se explicam mais pela fé, não pela razão!... – dona Clô interrompe-o:
- Meu filho, deixe o padre Apolinário em paz, ele veio descansar, não em missão religiosa! – o padre contemporiza:
- Não se preocupe dona Clô, acho a discussão interessante, ademais, dialogar com doutor José Maria, acrescenta, saio no lucro, ele tem uma vasta cultura!...
- Não, é sua bondade, eu que acrescento sua sabedoria aos meus conhecimentos. Eu não estudei Exegese! – continuou:
- Padre, deixe dona Clô pra lá... Se não for inconveniência, gostaria de continuar com o papo!
- Fique à vontade!
- A Ressurreição de Jesus Cristo, por exemplo, é uma questão de fé!...
- Por que razão?
- Bem, Mateus 28:5-6 e outros evangelistas registram a ressurreição de Jesus Cristo. Ele aparece aos discípulos e Tomé duvidou, mas o Senhor lhe tirou a dúvida. Todavia, não existe lógica científica Ele ter comido e bebido após a ressurreição...
- Qual é o mal Ele ter comido e bebido? Ele, apenas, quis dizer aos incrédulos: “Eu estou aqui, não sou um fantasma, creiam!”
- Padre, pense comigo: Se Ele foi crucificado e ressurgiu dos mortos, só poderia ter feito em espírito, concorda?
- Sim!
- Pelo que sei, espírito não come nem bebe, concorda?
- Sim!
- O homem é naturalmente corruptível, isto é, de carne e osso, matéria que apodrece enquanto que o espírito é indestrutível, concorda?
- Claro!
- Conclui-se que a ressurreição de Jesus Cristo é matéria retórica, discursiva – “E, não crendo eles ainda por causa da alegria, e estando maravilhados, disse-lhes: Tendes aqui alguma coisa que comer? Então, eles apresentaram-lhe parte de um peixe assado, e um favo de mel; o que Ele tomou, e comeu diante deles”. (Lucas: 24: 41-43) -, que coloca em cheque a natureza divina de Jesus Cristo. - o padre Apolinário Gaiardoni estava perdido, mas não perdeu o prumo nem a autoridade:
- Doutor José Maria, as coisas de Deus não são explicadas como as coisas do homem. O conhecimento do homem é relativo, nem sempre a ciência tem resposta para o que busca. A única maneira do homem se encontrar com Deus é através da oração, ou seja, da fé. A interpretação exegética das Escrituras Sagradas não deve ser tomada ao pé da letra, de suas figuras literárias, a interpretação das Escrituras Sagradas, deve ser feita em sua essência, além disto, os livros bíblicos têm mais de 2000 anos com enésimas traduções desde Gutenberg. – percebia-se que o padre estava nervoso.
- Padre, a nossa discussão é sobre a ressurreição, que junto à eucaristia, ao batismo, à remissão dos pecados e à promessa de vida eterna, são os fundamentos do cristianismo. Não devemos negligenciar a exegese, eu sei que muita coisa é simbólica, porém, é o símbolo que materializa a fé, portanto, a discussão procede e merece a nossa reflexão, a fé cega é boa para o coração e não pra alma Aliás, na história das religiões, os mártires, os homens santos, morreram sustentados pelas suas convicções religiosas, eles não eram idiotas...
- Eu sei. São Paulo é o exemplo bíblico maior de fé consciente. Doutor das leis judaicas, escritor de mancheia, perseguidor dos cristãos, depois de convertido, de perseguidor passou ser perseguido. Ele foi prisioneiro, exilado e decapitado pelo imperador Nero, tudo em nome da fé, foi quem fundamentou o pensamento cristão, defendeu a ressurreição como ninguém: “Ora, se se prega que Jesus ressuscitou dentre os mortos, como dizem alguns de vós que não há ressurreição de mortos? Se não há ressurreição dos mortos, nem Cristo ressuscitou. Se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa pregação, e também é vã a vossa fé” (1 Cor 15, 12-14). Além de São Paulo, temos defensores da doutrina cristã de peso como São Tomás de Aquino, São Francisco de Assis, Santo Agostinho, Santa Tereza D’ Ávila e por aí afora, todos intelectuais brilhantes que tiveram uma vida santa e uma fé fundamentada na razão. – concluiu o padre.
- Padre, eu lhe parabenizo pelo conhecimento elevado do cristianismo, não poderia ser diferente, tratando-se de um padre jovem, estudioso, atualizado, porém, o senhor não me respondeu se Jesus Cristo de carne e osso (matéria corruptível) subiu aos céus ou o que foi dito nos Evangelhos, não passa de figura retórica!?
- Com todo respeito ao senhor, acho uma discussão estéril. Jesus Cristo foi ressuscitado em espírito e não em matéria corruptível, o fato dele ter comido e bebido, atribuo às coisas de Deus que não têm explicação, mas aceitação. Porém, gostaria que se senhor não vê Jesus Cristo como a segunda pessoa da “Santíssima Trindade”, o visse como a maior personalidade histórica de todos os tempos, que pregou a não violência, a fraternidade, a igualdade e o amor, para o historiador Will Durant: “seria um milagre ainda mais incrível que apenas uma geração uns tantos homens simples e rudes (pescadores muitos deles) inventassem uma personalidade tão poderosa e atraente como Jesus, uma moral tão elevada e uma tão inspiradora ideia da fraternidade humana”. – dona Clô explode:
- Bem, chega!... – puxou o marido para o almoço, enquanto alertava Apolinário:
- Padre, perdoe este homem, ele tem ideias de ateu!... – doutor José Maria não deixa por menos:
- Querida, se eu mereço perdão, só Deus pode me perdoar, o nosso amigo Apolinário não possui este mister, mesmo em nome de Jesus Cristo, eu não acredito que um pecador possa absorver os pecados do outro (riso). Não sou ateu, sou cartesiano. Gostei do seu papo, muito inteligente, mas pouco convincente, por isto, peço-lhe, a priori, outra oportunidade para discutirmos sobre criação, evolução, a natureza de Deus, deus personalizado e outros mistérios, dou-lhe a minha palavra que não o importunarei mais. – o padre não lhe disse sim nem não. Dona Clô que lhe deu a resposta:
- Tenho certeza, querido, que o padre Apolinário lhe dará outra oportunidade e esclarecerá suas dúvidas.
Rilvan Santana
Enviado por Rilvan Santana em 21/09/2012
Alterado em 23/09/2012


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Imagem de cabeçalho: Sergiu Bacioiu/flickr