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A face obscura do homem - O Crime ( Cap I )

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O crime

Naquele dia, 29 de junho de 1958, Dr. José Maria Alves Andrada comemorou o seu quadragésimo oitavo aniversário e o final da Copa do Mundo entre Brasil e Suécia em Estocolmo, em sua linda mansão, onde o Brasil excedeu às expectativas e ganhou a partida final com um placar folgado, além de revelar Pelé para o mundo do futebol. Portanto, o conhecido criminalista itabunense teve dois fortes motivos para comemorar naquela data: o seu aniversário e o Brasil Campeão do Mundo da bola pela primeira vez.
Desde cedo, os empregados se desdobravam para que tudo ficasse de acordo o desejo de dona Clô que embora abominasse as extravagâncias festeiras do marido e não entendesse nada de futebol, jamais lhe contrariava, principalmente, naquele dia que o marido completava mais uma data natalícia.
Diferente de Dr. José Maria, extrovertido, bonachão, amante das mulheres, do bom vinho, da cerveja, do Whisky e de um bom prato, dona Clô era introspectiva, modos comedidos, educada na tradição antiga em que a mulher era preparada para ser dona de casa e mãe - o seu único excesso era participar de tudo que ocorria em sua igreja a contragosto do seu marido que embora não a proibisse, criticava-lhe o zelo exagerado que tinha com as coisas de sua paróquia -, dona Clô não tinha a altivez das mulheres corajosas e independentes, era uma personalidade pálida, fácil de ser controlada...
Ela era mais nova 10 anos do que o marido, porém, seu semblante fechado e suas roupas por demais comportadas lhes davam uma aparência mais velha, havia até quem dissesse que dona Clô tinha a mesma idade do marido, que de certa maneira era um exagero, se maquiada e noutros panos ou sem panos, ela era uma morena supimpa, sua roupa desajustada escondia um corpo escultural.
Eles descendiam de duas famílias ricas, Dr. José Maria quadruplicou o patrimônio com o seu trabalho de advogado, os armazéns sempre cheios de sacos de cacau e as fazendas de gado ainda mais repletas. Dona Clô não contribuiu diretamente para o aumento significativo de sua herança, não tinha faro para os negócios, talvez, por confiar na boa administração do marido, todavia, contribuiu com parcimônia nos gastos pessoais, com economia doméstica, havia quem a chamasse de sovina e miserável.
Dona Clô não era mão-de-figa, é que negócio naquela época era coisa de homem, o homem era o cofre da família, o chefe, o principal provedor do lar, aquele que zelava pelo bem estar da mulher e dos filhos, o homem podia tudo, inclusive, ser infiel... A mulher não trabalhava fora de casa, era educada desde cedo para casar, ser mãe e doméstica, enfim, a mulher dependia moral, financeira e economicamente do homem.
Antes das 20 horas do dia 29 de junho de 1958, a mansão do casal ficou cheia de convidados que se espalharam pela piscina, pela sala de jogos, pelo salão de dança e todas salas da mansão, teve gente letrada que preferiu escarafunchar a biblioteca enquanto a festa não começasse, porém, ninguém ficou impedido de bebericar o seu whisky, a sua cerveja, o seu refrigerante, sua salada de fruta, sua canjica, seu milho cozido ou assado, sua pamonha, seu pedaço de bolo, seu tira-gosto, todos sem exceção, eram servidos a contento pelos diligentes garçons.
Faz-se necessário lembrar ao leitor que junho é mês de Santo Antônio, São João e São Pedro, além das comidas juninas, farta no Nordeste nesse período, foi contratada uma banda de forró para animar a festa. Todos balançaram o esqueleto, exceto dona Clô e o padre italiano Apolinário Gaiardoni que condenavam o forró, enquanto padre e anfitriã confabulavam, Dr. José Maria, exímio forrozeiro, se esbaldava nos braços das damas aos olhos intrigados da esposa.
Às três horas da madrugada, Dr. José Maria, cheio de brincadeira com os serviçais, subiu para o pavimento superior com uma garrafa de whisky e meio grogue. A maioria havia deixado a festa, alguns parentes dos donos da casa e alguns amigos se refugiaram nos quartos de hóspedes ou se estiraram nos sofás. Os garçons e o pessoal da cozinha aproveitaram o fim da festa para comer o que sobrou e ultimar a arrumação, exigência da dona da casa, que os serviçais não deixassem um prato ou uma panela sem lavar, se eles não pudessem arrumar os quartos que deixassem os pátios e a cozinha limpos.
Dr. José Maria passa pelos quartos e vai direto para sua sala, um misto de gabinete de trabalho, biblioteca e aposento, ultimamente, ele a usava com frequencia face aos desentendimentos constantes com dona Clô. Não estava completamente bêbado, mas se levasse um empurrão não teria pernas. Foi grande o seu susto quando abriu a porta:
- Você aqui!?
- Desculpe-me, estava com sono e este sofá – apontando o sofá - é gostoso...
- Então, continue!
- Não, aqui é o seu refúgio preferido! – acrescentou:
- Mas, gostaria que ouvisse antes o que diz Hebreus para os desobedientes ao Senhor – fez a leitura: “Filho meu, não desprezes a correção do SENHOR, E não desmaies quando por ele fores repreendido; porque o Senhor corrige o que ama, e açoita a qualquer que recebe por filho. Na verdade, toda a correção, ao presente, não parece ser de gozo, senão de tristeza, mas depois produz um fruto pacífico de justiça nos exercitados por ela” (Hebreus 12.5,6.11).
-Não entendi porra nenhuma! Estou bêbado! Deixe pra amanhã sua lição de moral...
- Não haverá amanhã...
.- Então, vá embora e me deixe!... - jogou-se no sofá.
Às 11:45 horas, os dorminhocos acordaram com os gritos dolorosos de Talita, a filha mais velha do casal, a moça gritava desesperada, porque havia encontrado o seu pai com uma peixeira cravada no peito esquerdo. A reação da moça contaminou o coração mais duro, ela chorava e soluçava compulsivamente, fez-se necessário a intervenção urgente de um médico para acudi-lhe. Os outros filhos, Samuel e Júnior, também, ficaram desesperados e chorosos, porém, Talita era a xodó do pai, o seu bem-querer, portanto, todos lhe compreendiam a dor e o desespero.
Dona Clô foi às lágrimas e ao desespero, todavia, lamentou sua vida mundana, o seu afastamento de Deus e a negação religiosa do marido, entre uma lágrima e outra. Queixou-se da festa e da bebida, argumentou que se o marido não tivesse colocado tanta gente dentro de casa e não tivesse bebido a ponto de se apagar, o criminoso não lhe teria assassinado enquanto dormia, pois José Maria era um homem bravo, grande e forte, jamais seria morto sem luta.
A polícia não possuía, naquela época, recursos técnicos e científicos atuais. O delegado era “calça curta” e o médico-legista, apenas, fazia o levantamento cadavérico, informava a causa da morte – “lâmina de metal cortante que transfixou o peito esquerdo etc., etc.”, e quando muito recolhia as impressões digitais. O crime só era desvendado quando as provas eram testemunhais ou quando a prisão era em flagrante. Afora esses parcos recursos os crimes entravam no rol do esquecimento.
Os amigos e a comunidade itabunense choraram a morte do seu líder e benfeitor, e, prometiam que a tragédia não ficaria impune mesmo que levasse anos para descobrir o criminoso, ele teria que ir para trás das grades e purgar na terra os horrores do inferno!...

Autor: Rilvan Batista de Santana
 
Rilvan Santana
Enviado por Rilvan Santana em 13/09/2012
Alterado em 23/09/2012


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Imagem de cabeçalho: Sergiu Bacioiu/flickr