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O medo de ter medo

O medo de ter medo
R. Santana


O medo é um sentimento comum em todos os animais. Pode ser um sentimento real ou imaginário. Se alguém chega no parapeito de um edifício de dez andares e olha para baixo, claro que ele vai ficar com medo de despencar lá de cima, é um medo racional. Mas se alguém tem medo de dormir sozinho em sua casa, é um medo imaginário e injustificável. Nos animais irracionais o medo é instintivo. O medo existe na iminência do seu predador: o instinto de sobrevivência se sobrepuja.
Quem não sente um arrepio com os filmes do mestre do suspense, o cineasta Alfred Hitchcock? Nos filmes de Jack, o estripador, as cenas em que Jack persegue suas vítimas, em ruas escuras e ermas, com um fundo musical estridente, deixa qualquer um com o coração acelerado e o corpo trêmulo de medo por mais macho...
Conta-se que num lugarejo do sertão baiano, havia um indivíduo conhecido pela alcunha de Zé Nick que vivia assombrando os seus conterrâneos com os seus atos de bravura, destemor e valentia. Era o primeiro a apresentar-se em uma situação de perigo. Qualquer situação estranha na pequena comunidade, lá estava o temerário jactando-se de bravatas e impropérios. Mas diz o ditado que todo rei tem o seu dia de plebeu, esse valentão teve o seu dia fatal de covarde.
Nessa comunidade havia um casarão mal-assombrado, pertencente aos herdeiros dum famigerado coronel, conhecido pelo dinheiro, autoritarismo e um rosário de maldades. Nesse casarão ninguém dormia, pouco e pouco, foi se transformando em depósito de traças velhas. Ninguém se atrevia ir lá, sozinho à noite, pegar uma ferramenta ou outro objeto por maior que fosse a necessidade. Eram inúmeros os causos de assombração. Uns contavam que ao passar ali tinham visto o coronel sentado no alpendre em seus trajes característicos: outros, mais imaginativos contavam que o coronel estava acompanhado da sinhazinha e suas duas mucamas, proseando e rindo.
Numa roda de amigos, na pracinha, tão comum nessas cidadezinhas do interior, esse audacioso indivíduo foi provocado para passar uma noite naquela casa mal-assombrada. Um dos homens, falou em nome dos demais:
- Zé Nick, aposto uma novilha minha em um bezerro seu, que você não dorme uma noite naquela casa mal assombrada do coronel!
- É um desafio?... Você sabe que não levo desaforo pra casa. Ainda vai nascer o homem para me chamar de covarde!... Se você não fosse meu amigo iria quebrar seus dentes!
-Calma Zé!... Não fiz por mal, sei que você não é homem de medo, é que alma penada ninguém quer meia. Sei que você é capaz de pegar touro de unha, mas gente doutro mundo, eu corro às léguas. Você topa a aposta?
- Topo sim! Diga o dia que irei dormir lá. Eu mesmo irei escolher o bezerro de sua manada! – Negócio fechado, hora e o dia escolhidos, Zé Nick se despediu dos amigos e foi embora. Todos acharam uma empreitada fácil, Zé Nick iria tirar de letra. Todos reconheciam sua bravura, sua intrepidez, sua imprudência e ousadia. Ninguém teve coragem de tomar partido contra Zé Nick, com exceção do desafiante.
Sexta-feira 13, às 18:00, dia chuvoso, céu relampejando, trovoada ouvida à distância, compareceu Zé Nick no local combinado. O desafiante já se encontrava lá pajeado por amigos. Alguém do grupo sugeriu que se deixasse para outro dia pelas circunstâncias do mau tempo, mas, a idéia não prosperou. Zé Nick e os demais concordaram que as intempéries do tempo formavam um cenário lúgubre perfeito, valorizando mais e mais o desafio.
Zé Nick foi para o interior da casa. Improvisou sua cama numa grande sala. Vistoriou os cômodos que estavam entulhados de moveis velhos, ferramentas da fazenda, caçuás, selas antigas, cangalhas, espingardas enferrujadas e trabucos. Velharias indescritíveis pelo tempo e pela quantidade, além disso, teias de aranha por toda parte formando cortinas de designes incomparáveis...
Meia noite!... Um tufão entra não se sabe por onde e apaga o candeeiro. Algumas portas internas (as externas estavam fechadas por acordo comum dos contratantes), começam bater de modo sincronizado nas duelas. Zé Nick empunha seu revólver inutilmente. Percorre salas e corredores, em vão!... Nada encontra, porém, as pantomimas continuam a perturbar a auto-suficiência do valentão. Ele começa se arrepender do trato e pensa: “brigar com quem?” Sua mulher o tinha advertido:
- homem, essas almas penadas estão aqui por desígnio do Senhor. Elas estão em processo de expiação, ore por elas, não as provoquem!
- Não me perturbe mulher, isso é superstição, eu nunca vi nenhuma alma. Se lá encontrar alguma, ela terá de me dar explicações do que faz aqui... garanto-lhe: ela não voltará mais ao convívio dos vivos...
À medida que o tempo passava e os movimentos estranhos tomavam corpo, os sons e os ruídos aumentavam na cabeça de Zé Nick. Já não obedecia aos princípios da razão, tudo estava confuso... O suor já lhe gotejava os dedos. Sentia que alguém o agarrava... gaguejou socorro: - socor... cor...ro!!! Não ouviu nem viu mais nada...
Pela manhã a curiosidade do pequeno lugar era total. Todos acreditavam que Zé Nick tinha tido a noite de um príncipe consorte (que além de ter a rainha nos braços, não se aborrece com as coisas do seu reino) e estava feliz em seu aposento emprestado por uma noite. Porém, para espanto geral, encontraram-no morto, com o revólver preso na mão de dedos crispados... O desafortunado valentão estava preso numa das pilastras enganchado num prego curvado agarrado ao paletó. A cabeça pendia-lhe ao pescoço com os olhos esbugalhados e a boca aberta. Algumas testemunhas desse obscuro desfecho, diriam depois que o cenário tinha tudo de mórbido, hilariante, trágico, dramático...
Passado o susto e o luto de parentes e aderentes, todos concluíram que o intrépido Zé Nick, não tinha visto uma viva alma, mas, peripécias de ratos, baratas e outros animais daquele estranho zoológico do tempo e da fértil imaginação e superstição atávica daquela gente simples.
Zé Nick quis provar que não tinha medo e morreu tendo medo de ter medo.
Alguém já disse, bem se não disse, eu estou dizendo agora: o homem que não é supersticioso não tem alma!...


Um aluno saiu de uma prova difícil e ao passar pelo cemitério da cidade, encontrou na lápide de uma sepultura o seguinte epitáfio: “Jaz aqui um homem que nunca teve medo”. O aluno espirituoso completou: “porque nunca fez uma prova”.

Autor: Rilvan Batista de Santana
Gênero: Conto
 
Rilvan Santana
Enviado por Rilvan Santana em 19/08/2012
Alterado em 19/08/2012


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Imagem de cabeçalho: Sergiu Bacioiu/flickr