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O Sonho de José Maria

O sonho de José Maria
R. Santana

Ele não arrotava valentia, era de paz sem ser medroso, porém, era conservador, beato assumido, radical de nascença, retrógrado por convicção, não cedia nem negociava seus pontos de vista, noivou, mas largou a mulher amada na noite de núpcias quando descobriu que tinha sido enganado, comido gato por lebre, carne de ontem por carne do dia, era assim “seu” José Maria Faisão, comerciante estabelecido.
Não era velho, também não era moço, dava “pro gasto”, como dizia sua vizinha solteirona, todavia, “seu” José Maria Faisão não dava confiança a nenhum rabo de saia, desde àquela noite que se sentiu traído pela única mulher que amou.
Queixava-se das coisas e não das pessoas, ou seja, se o médico não acertava na prescrição, culpava o tratamento e não o médico, ele evitava o confronto e maldizia as circunstâncias...
Naquela noite, depois de encher o bucho com fausto jantar, esticou-se no sofá e adormeceu, sonhou que estava no céu e mudou o seu jeito escorregadio para arrogante e crítico:
- Quero falar com Deus!
- Quem é o senhor? – perguntou-lhe o anjo porteiro.
- José Maria!
- Sua morada senhor?
- Venho lá de baixo ou lá de cima... venho... da Terra!
- Senhor, lá dessas bandas, é São Pedro o chefe!
- Pois, chame o seu chefe!
O anjo sumiu num átimo de tempo, José Maria pensou que o mensageiro de Deus tivesse se escondido atrás de alguma parede ou alguma porta, mas com a mesma rapidez que sumiu, ele reapareceu com o papa dos papas, o porteiro-mor do céu:
- Filho, quais as notícias boas que tu me trazes da boa terra!?
- Perdão Santo homem, mas lá é guerra, é violência, é tsunami, é doença, além da esculhambação dos maricas!

- O quê!?
- É o que disse!...
- Por que viestes?
- Vou pedir a Deus para destruir a Terra!
- No Juízo Final, os males serão consumidos no fogo eterno!
- São Pedro me perdoe, mas já se esperou demais!
- Filho, o tempo de Deus é diferente do tempo do homem...
- Ele virou às costas para o homem!
- Não fales essas heresias, filho, Deus é ágape, é amor!
- Se Deus não abandonou o homem como se explica tanta maldade, tanto desastre ambiental?
- São os desígnios do Criador! – Continuou:
- O Senhor escreve certo por linhas tortas... – sentenciou o santo.
- Até casamento de homem com homem e mulher com mulher... onde já se viu!?
-Filho, aqui, nós vivemos como irmãos, nem se casam e nem se dão em casamento!
- E esses despudorados ainda querem filhos... E os grilos nessas cabecinhas?... – arremedou a voz de criancinha conversando com o adulto:
- Quem é seu pai? – Maria! – E sua mãe? – José! – dobrou-se de tanto rir.
- Filho, ainda não é motivo para Jeová destruir a humanidade!
As guerras, os crimes torpes, a pedofilia, os incestos, a destruição da natureza, a prostituição glamourizada, a proliferação de igrejas mercenárias e a maldade humana cada vez mais maldosa... não... não... não são motivos mais fortes do que os do tempo de Noé!?
Silêncio.
- Jesus Cristo já desceu lá e foi crucificado, se Ele voltar, além de crucificado, será esquartejado e colocado numa mala, a humanidade é má, São Pedro!
Silêncio.
- Senhor, o homem de ontem, adorava o bezerro de ouro por ignorância e insegurança; o homem de hoje, tem consciência de Deus, mas clama por dinheiro, sexo e poder!
Silêncio.
- Juízes corruptos, padres e pastores xibungos e fornicadores, além deles ludibriarem a boa fé do povo sofrido!
- Filho, Jesus Cristo recomendou que não “julgueis para não serdes julgados”, somente Ele, recebeu autoridade para julgar o homem no Juízo Final!
- Por isso, quero ver Deus!
- Filho, o homem não vê Deus!...
Silêncio.
- São Pedro, quando será a consumação dos tempos?
- Filho, é um mistério da Santíssima Trindade! Não tenho o mistério da vida e da morte...
O som do despertador misturou-se às últimas palavras do porteiro-mor do céu. José Maria acordou-se assustado e confuso, mais assustado do que confuso, mesmo no sonho, perguntou-se de onde arranjara tanta coragem para provocar o santo homem, pois não gostava de apontar os defeitos das pessoas, condenava as coisas da vida, e desesperado clamou:
- Meu Deus, meu Deus, porque abandonastes o homem!? Meu Deus, meu Deus, porque abandonastes o homem!? Meu Deus, meu Deus, porque abandonastes o homem?...

Silêncio.

Autor: Rilvan Batista de Santana
Gênero: Conto.
 
Rilvan Santana
Enviado por Rilvan Santana em 19/08/2012


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Imagem de cabeçalho: Sergiu Bacioiu/flickr